“Aqui não se vive, muito se pensa em trabalhar e em fazer sempre as mesmas coisas sob o pretexto de que sempre foi assim”. Esta frase ouço repetidas vezes desde que partilho a vida com um jovem carioca. As linhas de hoje são um tanto confessionais, aviso de antemão.
O trabalho é um traço cultural da nossa região, aquele que inflamos os pulmões e o ego para entoar cheios de orgulho, como se fosse grande coisa ou elemento de distinção moral superiorizante que nos coloque em outro patamar evolucionário. Ouvir, quase que diariamente, que aqui não se vive, me feriu por um bom tempo. Mas, como é de minha práxis psicológica associar aquilo que nos ofende com aquilo que mais intimamente concordamos, obriguei-me a refletir.
A vida pacata, segura e altamente laboral que temos a oportunidade de viver também é um limitador da expansão intelectual, que, é óbvio, não precisa ser desejada ou almejada por todos, afinal, o mundo sempre demandará de Faustos. Somos a mais perfeita definição de sujeitos em servidão, e de quebra, ainda somos felizes por isso. A leitura recente da obra: Admirável mundo novo, de Aldus Huxley, somada à curta viagem de férias no fim do ano, faz-me arriscar afirmar que essa limitação intelectual que vivemos se deve a uma distância abismal de expressões da grande arte e, também, porque não, de situações que imponham desafios mais viscerais a nossa vida. A redoma que nos protege nos deixa burros.
“Esse é o preço que temos de pagar pela estabilidade. É preciso escolher entre a felicidade e aquilo que antigamente se chamava a grande arte. Nós sacrificamos a grande arte […] Não é somente a arte que é incompatível com a felicidade, também o é a ciência. Ela é perigosa; temos de mantê-la cuidadosamente acorrentada e amordaçada.” Este fragmento extraído de Admirável mundo novo, me traz algum entendimento das razões pelas quais encontramos negacionistas em cada esquina das cidades de nossa região.
Nutrir aquilo que chamamos de alma, ou espírito (ou o nome que se queira dar) com grande arte é o que nos falta. Assistir a uma peça de teatro e admirar o talento dos artistas; permanecer longos instantes ouvindo música erudita, que se ouvida com dedicação faz as vísceras se moverem; contemplar uma obra pintada, esculpida, xilogravada, não há preço no valor disso; visitar museus, edifícios históricos, ou então, simplesmente, olhar com dedicação para a magnificência da natureza, nos amplia, nos expande, nos eleva.
Infelizmente, é possível percorrer todo tempo da existência sem questionar-se sobre a vida uma única vez. Não atoa nos sentimos tão vazios de sentido e buscamos desesperadamente nos dignificar no trabalho.
Solange Kappes
Psicóloga CRP 12/15087
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