No livro II da República de Platão, encontramos o mito do anel de Giges. História interessante para nos oportunizar reflexões acerca de nossos valores, moral, responsabilidade, aparências, dentre tantas outras possíveis. Giges, ao que consta, era um pastor a serviço do rei da Lídia. Certo dia, enquanto pastoreava, caiu um forte temporal seguido de um tremor de terra que fez abrir uma rachadura enorme no solo expondo um cadáver. Giges, observando o morto, notou um grande anel de ouro em seu dedo, pegou o anel, colocou no dedo e seguiu para uma assembleia habitual de pastores. Sentado entre os demais, virou o engaste no anel para o interior da mão e imediatamente ficou invisível. Notou que os demais falavam como se ele não estivesse ali. Quando se apercebeu disso, repetiu a experiência e confirmou o poder do anel, realmente ficava invisível quando o engaste estava virado para dentro.
Invisível, juntou-se aos mensageiros do rei e conseguiu adentrar o castelo, seduziu a rainha e conspirou para a morte do rei, o matou e acabou assumindo o poder. Quando rei, ninguém o contestava e todos o temiam. Ninguém se arriscava a falar mal dele, afinal, ele poderia estar ouvindo. Assim consolidou-se um tirano.
Na obra de Platão, as discussões perpassam, sobretudo, o tema da justiça. Agora, quando conto essa história mitológica no consultório, os pensamentos e associações giram em torno do quanto nossas ações cotidianas são regidas pelas aparências, de modo que, comportamentos são moldados para agradar outros. Costumo perguntar que valor há em agir ao sabor dos outros? Nesse caso, é possível que, se invisíveis, o comportamento autêntico fosse libertado. Afinal, nessa circunstância, o olhar alheio não impera. Agir de acordo consigo mesmo independentemente de ter alguém olhando ou avaliando nossas condutas é alimentar e fortalecer nossa moral [palavra e conceito quase em desuso na atualidade].
Pergunte-se, o quanto você mudaria em posse do anel de ouro? Livre dos olhares alheios, o que se autorizaria a fazer que visível você não faz? Os valores que tanto adora asseverar que tem, são mesmo seus? Ou são só uma máscara de adaptação a convivência? Se o outro importar tanto assim, talvez aquilo que dê regência para suas ações não seja, de fato, uma qualidade sua.
A frequentíssima e atual questão humana com a falta de sentido perpassa esse tema dos valores que são ancoradouro para nossas ações. É facílimo sentir o esvaziamento do sentido em fazer o que se faz, ser quem se é, viver o que se vive. Sobretudo em razão da assimilação de valores de vida que não são individuais e pessoais e que não passaram por um processo de reflexão e avaliação para que fossem incorporados como elementos do nosso caráter. Em suma, viver de aparências nos despersonaliza e conduz para os “males da alma”.
Solange Kappes
Psicóloga CRP 12/15087
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