Não são poucos os setores da economia e da nossa vida cotidiana que sofreram mudanças bruscas com a pandemia do novo coronavírus — e em muitas searas, parece que algumas transformações vieram para ficar.
Deve ser o caso das artes visuais, um mercado cultural que virou do avesso em tempos de distanciamento social: portas de museus e galerias foram das primeiras a fechar; feiras e bienais acabaram adiadas por meses, quando não canceladas; e a mediação fria das telas (não as emolduradas em quadros, mas essas brilhantes cheias de pixels), antes criticada, se tornou a única alternativa para o consumo de arte pelo público.
Uma grande crise está à espreita das instituições artísticas, colocando à prova todo o atual modelo do mercado. Recentemente, a Unesco e o Conselho Internacional de Museus estimaram que 90% dos museus do mundo tiveram que fechar durante os períodos de quarentena e que 13% deles corriam o risco de não voltar a abrir.
Os que já voltaram a funcionar ou se preparam para a reabertura terão que desenvolver novas regras de segurança, e não voltaremos a ver tão cedo centenas de turistas apinhados em torno da Monalisa ou olhando para o teto da Capela Sistina.
A internacionalização opulenta de feiras e bienais não parece mais viável em um mundo de fronteiras restritas, e o mercado de arte vai ter que reinventar seu prestígio online. Além disso, os governos precisarão criar estratégias para que os artistas sobrevivam financeiramente.
A arte sempre vai continuar, inventar novas formas de existir. Espero, tomara, que nós todos sejamos surpreendidos com uma outra forma de fazer arte daqui para frente
A arte que emergirá deste momento obscuro talvez tenha uma cara bem diferente da que conhecemos hoje. Pode ser uma arte que falará sobre este período de crise e que se desenvolverá de forma mais local, mais coletiva e mais compartilhada. Embora os tours na internet não substituam a experiência presencial de observar uma obra de arte, os tempos de virtualidade excessiva trazem lições sobre o contato e as trocas com o público, reforçando o lugar dos museus como espaço de debate e diálogo. Essas são algumas das impressões de Jochen Volz, curador, crítico de arte e diretor da Pinacoteca do Estado de São Paulo.
À frente da instituição paulista — que enquanto está de portas fechadas tem apostado em posts diários sobre a própria coleção e inaugurou uma exposição pensada especialmente para os meios digitais —, ele fala à Gama sobre os caminhos possíveis para as artes visuais durante e após a pandemia.
Em março, você falou à Gama sobre a importância de trabalhar coletivamente nas artes a partir deste momento da pandemia. Passados três meses, você mantém essa opinião?
Jochen Volz |Ainda acredito nisso. Acho que estamos vivendo uma outra situação, que demanda outros modos de produção, outras ecologias de produção artística. Valores como uma produção consciente, local, em solidariedade ou coletiva vão ganhar cada vez mais peso. Nesse sentido, acho que sim, a ideia de uma produção coletiva — que entende a divisão de trabalho, o compartilhamento, a divisão da autoria — vai ser um modelo e uma estratégia que pode ganhar muita força neste momento e nos próximos anos.G |Muitos museus apostaram em tours virtuais durante o período de fechamento. Como você vê essa rápida adaptação e uso da tecnologia por parte dos museus?
J.V. |Acho que estamos todos aprendendo. Não só sobre a adaptação e o uso da tecnologia, mas sobre outros modos de contato, de se comportar como museu e como público. Isso vai muito além da tecnologia e tem trazido outras formas de criar uma relação entre o conteúdo do museu e o público. E essa nova forma de interagir, espero que ela se mantenha. Ficou muito claro que as ofertas digitais nunca foram pensadas para substituir uma experiência com arte, mas elas podem ser complementares. Essa troca de ideias e diálogo mais direto que os meios digitais oferecem são ferramentas muito potentes e podem talvez transformar a ideia de como o museu se relaciona com o público no futuro. Mas espero que não pare aí. Espero que a gente aproveite e aprenda cada vez mais a usar essas tecnologias a nosso favor, talvez como um novo campo de experimentação artística, como uma nova forma de ter uma experiência coletiva. Eu entendo que isso veio pra ficar, sim.G |Não é o caso do Brasil, mas muitos museus da Europa já estão reabrindo, com novas regras e restrições. Você tem acompanhado? Como acha que será esse novo momento da arte para os museus e para o público?
J.V. |Sim, eu tenho acompanhado e também participado dessa discussão de novos protocolos para uma retomada e uma reabertura para o público dos museus. Nós todos estamos trabalhando nisso, pensando em como será esse momento, uma vez que seja possível e seguro de novo receber o público nos museus. Como isso vai se dar… Tem obviamente limitadores de aglomeração de pessoas, distanciamento, outras formas de interagir um com o outro. Entendo que talvez essa ideia de centenas de turistas em volta de uma obra demore bastante tempo para voltar a acontecer. Mas acho importante lembrar que os museus e as instituições culturais são espaços públicos, lugares de debate, de encontro, de diálogo. Acho uma obrigação nossa experimentar, apesar das limitações em função da segurança de saúde, e promover esse encontro. É um encontro, sim, com memória, com o acervo, mas também uma construção de um senso coletivo, um senso da pluralidade, uma plataforma de debate. Isso a gente precisa promover. Talvez não sejam experiências em massa, mas a coletividade e a experiência coletiva são algo essencial para o museu, como são para a sociedade. Acho que cabe aos museus e aos espaços culturais pensar como será isso no futuro.G |Além dos museus, outras áreas importantes foram afetadas pela pandemia: oficinas, residências, bienais e feiras. Quais adaptações esses setores vão ter que enfrentar daqui para frente?
J.V. |Vai haver mudanças bastante visíveis para todo mundo. São mudanças que a pandemia tem trazido agora ou tornado muito presentes, mas que são necessárias e que estão sendo discutidas há muito tempo. A internacionalização do mercado de arte e a forma com que obras e artistas viajam para feiras ou de bienal para bienal são modelos ecologicamente muito problemáticos e talvez, a longo prazo, não suportáveis. E a pandemia tem tornado isso abruptamente visível. Entendo que é um processo que vem acontecendo, uma consciência crescente do impacto disso, da cultura e das artes, além de outras partes da economia. É necessário repensar como usar nossos recursos de forma sustentável. Acho que isso vale para a cultura e para outros setores.G |E no que diz respeito à produção artística, do lado dos artistas, há alguma mudança já observável?
J.V. |A produção artística sempre nos surpreende e sempre vai a caminhos que a gente não necessariamente imagina. Acho que nós podemos todos ficar curiosos e ser surpreendidos com o que os artistas vão fazer e vão trazer. Muitos estão passando por um período muito difícil, que não tem nada de romântico, e isso é importante reconhecer. Mas artistas não fazem arte por causa de uma situação privilegiada. Eles fazem arte porque é uma ciência de refletir sobre nosso estar no mundo, nossa situação no mundo. A arte sempre vai continuar, sempre vai inventar novas formas de existir. Espero, tomara, que nós todos sejamos surpreendidos com uma outra forma de fazer arte daqui para frente.G |Financeiramente falando, também tem sido um desafio para o setor. Como fazer a arte ser viável a partir de agora? Como os artistas e as instituições vão sobreviver durante e depois da pandemia?
J.V. |Fazer arte nunca é viável. Tem momentos mais vantajosos para a cultura e para o fazer artístico, e tem momentos mais difíceis. Estamos vivendo, pela pandemia mas também pelo quadro político atual no Brasil, um momento difícil. Mas a arte vai continuar. Apesar de tudo, ela não é uma opção, é um elemento muito importante de uma sociedade. Isso demonstra como é importante ter uma forte visão e, a partir disso, uma clara política pró-cultura, a favor da cultura, fortalecendo a cultura. Políticas públicas a nível federal, estadual e municipal. E essas políticas vão se mostrar necessárias de forma emergencial e também a médio e a longo prazo. Isso tem se tornado muito evidente neste momento. Tem várias iniciativas que já estão acontecendo, mas fica muito claro que um país que não valoriza a própria produção cultural vai passar por uma situação muito difícil. É muito importante, apesar da crise e com a crise, criar políticas pró-cultura.G |Como está sendo para a Pinacoteca?
J.V. |Mesmo que fisicamente distantes, tem sido fundamental para a Pinacoteca, neste período de pandemia, se manter conectada com o público. A campanha #pinadecasa é um sucesso nas redes sociais, com postagens diárias sobre as obras da nossa coleção — inclusive, agora toda quarta-feira é dia de post acessível com a descrição das imagens para cegos. Além disso, as lives com curadores, artistas, arquitetos e filósofos, os tours virtuais, o espetáculo do PinaCanção que está disponível em nosso site, voltado para toda a família, são ações que auxiliam quem está e pode ficar em casa a passar por este momento de confinamento social. É um desafio, mas também estimulante, pois nos faz ir além do que já produzimos. Por exemplo, em maio, a instituição fez algo inédito e inaugurou “Distância”, a primeira exposição pensada especialmente para os meios digitais, com cinco vídeos e filmes. É importante entender que o museu e o público ainda estão aprendendo a como se relacionar de forma efetiva nos meios digitais. Mas ressalto que nada substitui uma visita presencial. As ações virtuais são pensadas como complemento a uma visita presencial. Agora estamos discutindo como serão essas ações no futuro, como serão os desdobramentos que vão além dos espaços físicos da Pinacoteca.G |Por fim, você acredita que em momentos como este a arte se torna mais ou menos relevante?
A arte se torna cada vez mais relevante. Fica evidente que, num momento de isolamento e distanciamento social, a nossa ideia de sociedade e de país se cria a partir de experiências compartilhadas. Entre essas experiências compartilhadas, uma das mais lindas e bonitas é a cultura, onde se produz arte, onde se divide, se debate, onde há encontros não necessariamente concordantes mas que criam espaços para debate. A cultura oferece isso. Fica cada vez mais claro qual é a importância do papel da arte e da cultura dentro da sociedade, ainda mais lembrando que a arte é uma das formas essenciais para a educação, para uma transformação social. Nesse sentido, acho que a arte se torna cada vez mais relevante.
Fonte: Revista Gama