Coluna | Era sol que me faltava
“Depressa, depressa, que não se perca tempo por pouco amor” Assim estão as almas no quarto círculo do purgatório, condenadas ao castigo de correr incessantemente, oposto ao que fizeram em vida, quando deixaram-se tomar pelo pecado da preguiça ou acídia, como é conhecida em textos mais antigos.
Lhes confesso, escrever sobre a preguiça, principalmente sob a ótica de um pecado capital, foi extremamente desafiador. Vejam bem, a acídia diz respeito a um sentimento de prostração, abatimento, debilidade e certa fraqueza diante da vida, quase como uma experiência de melancolia, como afirmar que isto é pecado ou então algo ruim se é parte inexorável da vida? Além disso, faço parte do clube de pessoas que considera fundamental experimentar essas sensações. Ademais, os pecados capitais são assim denominados por provocarem a produção de outros vícios, que outro vício poderia surgir da preguiça? Talvez tristeza, mas a preguiça é o único pecado capaz de impedir os outros seis.
Levando em consideração a moralidade que está por detrás de valorar determinadas condutas como pecado, pelas costas da preguiça encontramos a necessidade de uma sociedade ocidental, fortemente amparada por valores cristãos e utilitaristas, em que se considera necessário trabalhar constantemente e, assim, produzir sentido para a vida através do labor. Uma moral em que o sujeito só pode ter atributos e ser considerado parte da sociedade, caso ele esteja produzindo. Fica quase óbvio porque a preguiça recebeu os contornos do pecado de um amor falho.
A falha do interesse, do amor pela vida provocado pela preguiça resulta em um tédio que afasta o sujeito da sua atividade normal, agride sua autoestima e provoca sensação de esvaziamento e até certo asco pelo esforço. Assim, a inércia nos aprisiona e provoca sentimento de profunda falta de sentido.
Quero solicitar a ajuda de Nietzsche para suscitar algumas reflexões extras sobre a preguiça, afinal, ele foi um dos filósofos que mais veementemente defendeu a necessidade do ócio e do tempo para si, afirmando: “Aquele que não tem ao menos ¼ do dia para si, é escravo”. Em sua obra mais conhecida, Assim Falava Zaratustra, Nietzsche escreve sobre duas figuras interessantes, primeiro a figura do último homem, que aparece ao lado do seu oposto, a figura do Além do Homem. Através do Além do Homem (Übermansch) Zaratustra anuncia uma nova perspectiva de sentido para a humanidade, mas a constatação a que ele chega é de que a humanidade quer o último homem, aquele que, não sendo nem pobre nem rico, dignifica-se pelo trabalho e aceita valores que, na compreensão de Nietzsche, enaltece o homem fraco e faz com que ele aceite viver apenas com pequenos prazeres. Um Fausto de Goethe não é mesmo?
A preguiça pode então ser compreendida por dois vieses. Pela possibilidade de um ócio e uma melancolia que pode ser altamente produtiva para o homem, acautelando-se do fato de que existe potencial adoecedor nisso, ou então pela via da vagabundagem em que a utilidade do sujeito se perde.
Finalizo com um sujeito altamente entediado, que soube fazer disso lirismo, Fernando Pessoa: “Não é o tédio a doença do aborrecimento de nada ter que fazer, mas a doença maior de se sentir que não vale a pena fazer nada.”
Caloroso cumprimento e até semana que vem.
Solange Kappes
Psicóloga CRP 12/15087
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