Coluna: Cultura e Arte
A crueldade da vida habita em dois horizontes: há, em seu sentido mais imediato, as mãos sujas de sangue dos líderes das grandes civilizações; e, trajada noutras peles, a vida que vive num futuro inexistente: a eterna expectativa em um eterno futuro que torna órfão o presente.
Existe no ato de viver uma urgência que a moral-civilizatória da cultura pacificadora nos destituiu e é preciso mais do que nunca resgatá-la; claro que isso implica a abertura para a potência, um treinamento liberatório para a magia.
A cultura da paz é silenciosa, ela produz medo. Afinal, é muito mais fácil entrar no jogo do que burlar as “pequenas inconveniências sociais”. No fundo temos medo de uma vida que se desenvolveria toda sob o signo da verdadeira magia. Isso porque a vida fundada na verdadeira magia nos poria em eterno e constante devir, no agora-já, no fluxo desterritorializante que a urgência da vida carrega nos braços.
A esta cultura que amputa, separa o corpo da sua potência de agir, que nos faz perder a verdadeira dimensão do ato de viver, perdendo a magia do devir, do agora-já e da experiência de existir, opomos uma cultura de combate.
Não se trata de um modo de viver belicoso, mas um movimento da subjetividade que atualiza uma cultura contra a cultura da paz que possa nos colocar na condição de criadores da vida: eis o grande pavor dos déspotas, a radical emancipação dos modos de existir.
Diante da cordialidade de tantas fórmulas para o bem viver, a vida cessa. A experiência do estar vivo, aqui, é separada da magia e é preciso então criar mecanismos ou dispositivos de contra-cultura para fazer cessar esta ideia sobre o que é viver.
Esse mecanismo de contra-cultura pode ter um princípio efetivo no papel exercido pela crítica, que é o de preparar o terreno. Encontramos aqui a figura do leão de Zaratustra, a negação afirmativa que recusa as condições vigentes, que diz não aos estatutos da representação e cria para si um corpo de experimentações: a linguagem deve estar a serviço do pensamento, e pensar é um ato de criação raro.
Acostumados a viver na projeção de um tal futuro, obviamente inexistente, perdemos a capacidade de estar à altura do presente. Deixamos de acontecer no devir. A cultura da civilidade é a cultura da paz, cultura do medo e do ressentimento e nesse ínterim só precisa se salvar quem não sabe fluir, quem tem medo de se expor aos riscos e à crueldade do devir na existência.
Investe-se muito em uma cultura que não salva a humanidade da fome de viver melhor e é preciso extrair, daquilo que se chama cultura, ideias cuja força viva é idêntica a da fome, citando Artaud e completando: “Nunca, quando é a própria vida que nos foge, se falou tanto em civilização e cultura”.
REFERÊNCIAS
ARTAUD, Antonin. O Teatro e a Cultura in ARTAUD, A. O Teatro e Seu Duplo; trad. Teixeira Coelho. – São Paulo : Max Limonad; 1984, p. 15 – 22.
NIETZSCHE, Friedrich. Das três metamorfoses in NIETZSCHE, F. Assim Falou Zaratustra; trad. José Mendes de Souza. – Rio de Janeiro: PocketOuro; 2008, p. 29 – 34.
Manolo Kottwitz
Professor de Artes Cênicas/Mestre em Psicologia Social e Cultura