A dor, deixamos de senti-la e de pensa-la. Estamos infectados e contaminados por outros vírus além do SarsCOV-2, a busca e o desejo pela positividade, felicidade e produtividade estão fazendo morada em nossos corpos e os danos, a curto, médio e longo prazo, ainda são imprevisíveis. Pode parecer absurdo, loucura, afirmar que positividade, felicidade e produtividade são problemas e podem resultar em inúmeros outros, não é mesmo? Mas, vamos a algumas reflexões possíveis.
Tempos marcados por uma exacerbada cobrança – lamentavelmente transmutada em autocobrança – pelo rendimento, pelo sucesso, pela produtividade, faz com que as pessoas busquem, cada vez mais, fórmulas de auto exploração de potenciais anunciadamente por desvendar. Uma auto exploração que não abre espaço para a experiência da dor e do sofrimento, afinal, eles são antagônicos ao rendimento desenfreado. É sabido que a não experiência da dor não oportuniza catarses, nome que se dá a purgação das paixões e sentimentos. Consequentemente, não se cresce, não se amadurece, não se desenvolve crítica ou análise de vida alguma.
Tão é verdade que não estamos dispostos a experimentar a dor que ela – a dor – acabou por se tornar uma circunstância médica. Na compreensão do filósofo Byung-Chul Han, ser feliz é a nova formula de dominação sob a qual estamos submetidos, mas o pior é que ela nos passa uma sensação de liberdade, em razão do fato de que felicidade e positividade raramente são questionadas. Afim de eliminar qualquer aproximação com a dor, analgésicos são vendidos sem receituário e utilizados até de forma preventiva, para dores nem sentidas. Recordo de meu professor de mestrado, Dr. Clodoaldo, exemplificando o uso de analgésicos para evitar a dor da cólica menstrual, sem saber se neste mês ela viria de fato (a dor ou a menstruação). A medicalização da dor impede sua percepção, que impede que ela se torne fala, que impede a compreensão e expressão do que se sente e se impede isso, impede também a capacidade crítica diante da vida.
A dor e a felicidade são dois irmãos e gêmeos, que crescem juntos, ou juntos permanecem pequenos. Isto disse Nietzsche há um século e meio atrás. Ou seja, se ambos crescem juntos ou permanecem pequenos juntos, não há como vislumbrar felicidade em intensidade sem dor em intensidade. A felicidade só é perceptível quando sucedida de uma experiência dolorosa. Outra frase de Nietzsche nos ajuda a compreender essa interrelação e interdependência, eu costumo verbaliza-la da seguinte forma: Se queremos ser árvores com copas capazes de tocar os céus, devemos aceitar as raízes capazes de tocar os infernos. Nietzsche, obviamente, não é único a denunciar essa íntima conexão entre dor e felicidade, Palazzeschi também afirma que: “Não se pode rir do fundo do coração se não se estava antes profundamente enterrado na dor humana”.
Para a dor a virtude necessária é a coragem. Coragem em um mundo de covardes, covardes para sentir, covardes para amar, covardes até para a aceitação da culpa que é resultado do fracasso em tentar viver em uma sociedade da produtividade. E como o sofrimento é atirado sobre nossas costas, como se nosso fracasso fosse o único responsável por ele, só o que resta é deprimir, é depressão – depressão que trata mais de um ‘não sentir’ de um esvaziamento, do que de tristezas e dores.
Quanto mais nosso viver for um sobreviver, mais temeremos a morte. Afinal, vida mal vivida e medos também são irmãos gêmeos.
Solange Kappes
Psicóloga CRP 12/15087
E-mail: psicologasolangekappes@gmail.com
Redes sociais:www.facebook.com/solange.kappes | Instagram: @solangekappes
A opinião dos colunistas não reflete necessariamente a visão do veículo.