“Não há dúvida, o homem é o animal doente”. Valho-me da afirmativa nietzschiana para propor reflexões a cerca das psicopatologias, sobretudo da depressão, que é de ocorrência massiva na sociedade atual. Apesar das múltiplas determinações de uma doença, Nietzsche identificava sua origem, seu primeiro impulso, na entrada do homem na civilização, que, de acordo com ele, representou a mais radical de todas as mudanças. De acordo com Faustino – estudiosa de Nietzsche – a forma da transição para a civilização fez o homem romper com seu passado animal, o que exigiu: adaptar-se a novas condições de existência, permeadas por regras; refrear e reprimir fortes impulsos que guiavam o comportamento; conviver com antigos instintos reprimidos, ainda ativos e funcionando, que exigem satisfação.
Nessa jornada civilizatória e psicopatologizante, chegamos à questão determinante ao tratar dos instintos reprimidos que permanecem ativos e exigem satisfação. Você deve estar, sabiamente, se perguntando: por quê? Porque todos os instintos que não são (e não foram) descarregados para o mundo exterior voltam-se para o interior. Sobretudo instintos de guerra, crueldade e agressão, que tentamos esforçadamente eliminar da vida civilizada (tanto que, quando se transformam em ações exteriorizadas, as julgamos incivilidades).
O fato de os instintos não descarregados voltarem para dentro cria um mundo interior com extensão e profundidade, ou seja, funda aquilo que hoje nomeamos de alma. Eis que, então, tendo alma, temos também a possibilidade de a adoecer. Surge o homem que sofre do homem, o sofredor de si. Vejam bem, na mesma medida em que civilizar-se parece assumir contornos negativos, é também em razão da sublimação dos instintos que criamos a cultura, a arte, a ciência e as tecnologias – Aliás, não é guerreando, violentando ou agredindo que eliminaremos psicopatologias. A chatice que vivemos em um mundo polarizado faz com que seja preciso pontuar isso.
Segundo Roudinesco, psicanalista francesa, enquanto sociedade moderna, nossa tentativa de eliminar da realidade sua dimensão negativa (começamos pelos instintos, hoje falamos de infortúnios, morte, violência, etc.) procurando integrar a todos em um único sistema em nome da globalização e do sucesso econômico, faz com que valorizemos o individualismo e a covardia. É possível compreender, certo? Afinal, é preciso ter fortes valores para conviver com os infortúnios, violências ou morte.
Maldizer nossa dimensão negativa e querer eliminá-la parece ser parte fundante do tsunami de depressão que vivemos. A seguinte frase de Roudinesco esclarece muito bem: “Não surpreende, portanto, que a infelicidade que fingimos exorcizar retorne de maneira fulminante no campo das relações sociais e afetivas: recurso ao irracional, culto das pequenas diferenças, valorização do vazio e da estupidez etc. A violência da calmaria, às vezes, é mais terrível do que a travessia de tempestades.”
Solange Kappes
Psicóloga CRP 12/15087
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