A higienização do mundo moderno perpassa absolutamente todos os segmentos da vida. Desde o corpo, em que não mantemos mais os pêlos; a linguagem, de onde queremos extrair realidade proibindo palavras; o desvelamento da vida privada nas redes sociais, onde inclusive tentamos ocultar nossa feiúra; até mesmo as relações afetivas, em que não queremos ter de lidar com a negatividade do outro; alcançando inclusive nossas vidas sexuais, de onde queremos eliminar excessos e transgressões por percebê-los como violências, quando, na verdade, a essência da sexualidade consiste nisso.
Estamos nos tornando lisinhos, limpinhos, robozinhos hiperconectados, broxas e ainda pagamos de “good vibes” e conectados, evoluídos ou moralmente superiores porque utilizamos pronomes neutros, supostamente não temos preconceitos, desempenhamos ativismo de rede e porque andamos de bicicleta ou não comemos carne. Essa bolha social lustrosa em que muitos estão vivendo não é nada saudável. Ocasionalmente me questiono: Será que estes bufões conseguem perceber a realidade, a vida como ela é?
A maioria das pessoas, especialmente as que chegam até os consultórios, relatam um vazio interior abismal, sensação de vida amorfa, sem propósito, incapacidade de progredir, angústia, etc. A vida não deveria dar tanta ênfase em salvar o planeta quando a gente ainda não sabe salvar a si próprio. E como fazê-lo quando a existência e o discurso estão praticamente limpos de negatividade? Só assumindo o que há de negativo é que saberemos diferir o que é positivo.
O problema da falta de negatividade, de reconhecer o feio, sujo, nojento, errado e disfórmico, tanto nos outros como em mim e no mundo está justamente na razão de não restar nada à ser combatido. Cria-se uma imposição, que transforma-se em autoimposição pelo rendimento, pelo trabalho, por estar sempre bem, animado, disposto, alegre e agradecendo. Por estas razões adoecemos, estamos sempre cansados, desanimados, adoidados por sentido para a vida, mesmo que tenhamos que pagar por ele e quando chegamos à este ponto, servimos totalmente ao mercado, tanto na produtividade ininterrupta, quando na disposição por comprar saúde e sentido para a vida.
Tudo isso denota uma crescente incapacidade de lidar com as próprias emoções e sentimentos. Mas isto também é óbvio, afinal, em um mundo que limpa tudo, alisa tudo, vende remédios e auto ajuda como fórmula de bem-estar, que chance temos? Qual é o espaço para o autoconhecimento? Muito pequeno, especialmente porque conhecer-se não implica necessariamente em felicidade, já que é assim que descobrimos nossas fraquezas, nossa feiúra, nossos erros, que o sofrimento é inexorável e inadiável, que vamos envelhecer, enrugar (Deus nos livre de deixar de ficar murchos, pagaremos a estética para nos alisar de novo, igual telinha de celular), adoecer e morrer. Mas estar consciente e lúcido nos deixa menos utópicos e nos dá uma chance de aceitar a vida, encará-la e fazer dela alguma coisa satisfatória, mesmo sabendo que a perdemos no final.
Solange Kappes
Psicóloga CRP 12/15087
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