Coluna | Era Sol que me faltava
Ter amigos pra quê?
Pensar os vínculos e as relações é inevitável quando adentramos o universo psicológico dos sujeitos. Nesta semana, depois de muita dúvida sobre o que escrever, decidi refletir e produzir algumas linhas sobre a amizade, a mais inexplicável e indispensável das relações humanas, e fazê-lo com a ajuda de competentes pensadores. Você, querido leitor, pode estar sabiamente questionando, mas por que mais inexplicável e indispensável das relações? Certo, acompanhe-me na divagação.
Oscar Wilde, em um bonito texto sobre a amizade, anuncia, “Escolho meus amigos, não pela pele ou outro arquétipo qualquer, mas pela pupila, tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante” […] Aos amigos escolhemos, não há nada que nos vincule ou pareça querer nos obrigar previamente à eles. Portanto, um amigo carrega sempre algo com o que nos identificamos e que faz com que tenhamos interesse em mantê-lo próximo. Wilde termina o texto dizendo que temos amigos para saber quem nós somos. Por serem relações que não se justificam por nenhuma consanguinidade, interesse amoroso ou instituições, os amigos acabam por ser a melhor forma de sabermos sobre nossas almas.
Michel de Montaigne, afirma que a amizade nutre-se da comunicação, que se estabelece em domínios totalmente distintos daqueles que desenvolvemos com nossos familiares, em que, por exemplo, o papel de aconselhar ou formular censuras é calçado apertado demais para os filhos, e serve melhor aos pais. Diferentemente do que somos capazes de cultivar com os amigos. Outra nuance é a correspondência dos gostos, característica que engendra as sólidas amizades e também não necessariamente se aplica sobre os vínculos filiais ou fraternais. Das relações que trazemos para nossa vida, nenhuma depende mais do nosso livre arbítrio do que a amizade.
Em comparação aos vínculos amorosos, a amizade é capaz de produzir calor que dissipa-se por todo nosso ser, de forma mais temperada e serena, com suavidade e delicadeza. Além de não carregar julgamento pelo capital estético, financeiro ou de saúde. Diferentemente das paixões românticas que são carregadas de desejo e, sobre as quais o tempo e a presença agem de modo negativo, enquanto uma amizade alimenta-se, eleva-se e amplia na ação destes. Ao que parece, somos mais capazes de superar a perda de amores e viver sem eles, do que perder amigos e ser capaz de seguir existindo sem estes.
Trazendo as contribuições de Sêneca sobre a amizade, o filósofo do estoicismo afirma que não há nada que agrade tanto a alma quanto um amigo fiel. É felicidade inevitável encontrar pessoa com quem se possa compartilhar os temores e as doçuras do coração, sem necessidade de ocultar coisa qualquer. Considera ainda que costumam ser consciências que nos temem menos que nós próprios, e cujas palavras são capazes de produzir acalento como as de ninguém mais.
Alerta, também, que devemos sempre ser capazes de nos acautelar ao escolher alguém com quem compartilhar tamanha intimidade, observando se o amigo é capaz de valorizar o tempo da existência que é desprendido no cultivo do vínculo. Porque sim, ter um amigo implica oferecer-lhe tempo, presença, intimidade, e acolher o que dele vem com a mesma dedicação.
A amizade é exigente e, ao mesmo tempo, sublime, no meu entender, questão de irmandade de alma. Santo Agostinho afirmou isto quando da morte do seu melhor amigo, “Eu tinha a sensação de que nossas duas almas eram uma em dois corpos”. Montaigne, ao tentar explicar sua amizade com La Boetie disse: “Se insistirem para que eu diga por que o amava, sinto que não saberia expressar senão respondendo, porque era ele; porque era eu”.
As relações de amizade na forma dessas sugeridas pelo poeta e pensadores que visitamos no texto, me parecem comprometidas na modernidade. Nosso narcisismo dificulta o vínculo, estamos acovardados diante da intimidade, intolerantes à tudo que não reforça nossa individualidade, incapazes de nos contentarmos com as alegrias do outro e nos afastando ao menor sinal de sofrimento do outro, acusando a relação como “tóxica”.
E assim, os vínculos, de forma geral, estão diluídos e nos escapando entre os dedos. Todos os dias perdemos e fazemos novos amigos, mas não em profundidade ao ponto de entregarmos toda boniteza e feiura da nossa alma à eles, tememos a desaprovação como nunca antes.