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Coluna: Arte e Cultura

A cultura e a peste

Antonin Artaud (1896-1948), mesmo banhado na loucura que o acometia em leito de morte, tinha razão. Sob a ação da peste, as rígidas e quase impermeáveis estruturas sociais se liquefazem e, ainda, algumas viram pó, como os corpos dos pestilentos que necessitam cremação.

Não apenas o corpo vem à óbito, mas toda a ordem social também se desmorona. O vírus nos acomete, enquanto sociedade, e presencia todos os fracassos morais, carregando consigo uma dialética que só podemos sintetizar aceitando-a: os modos de existir, de saber/fazer do homem branco demandam a produção lógicas de consumo, um esvaziamento das potências da natureza em nome de um poder que não tem rosto.

Faz seu servo mesmo aquele que venha ocupar um posto supremo. Nunca é tarde demais para conjurar o flagelo. E é preciso então criar novos modos de produzir vida que não esteja amparada na perspectiva suicidária que vigora. Ora, o que temos por trás daquele discurso cafona de que “a economia não pode parar”?

Para a economia não estancar em seu próprio eixo, é necessário que sejam postas em ação práticas suicidarias, subjetivando o sistema, transformando-o em sujeito e, invertendo a relação, reificando seus trabalhadores, confiscando sua cidadania, contabilizando o valor da sua vida pela sua capacidade de produção e manutenção do mercado.

Muito embora seja esta a prática vigente, há outro tipo de contágio que aos poucos os suicidas vão se dando conta: quem e o que têm evitado muitas vezes um colapso psíquico diante da configuração de uma vida enclausurada nas quatro paredes de um lar são os artistas e as matérias sensível que produzem com e para o mundo.

São estes, os operários da cultura, sempre os primeiros a sofrer cortes e sempre os últimos a serem lembrados, que estão fazendo o que se pode chamar de “produção de vida”. Perceba que são movimentos que agem em direções opostas, mas não são oponentes: já dizia Nietzsche, noutras palavras, que essa arte nascida das dores do mundo, vem para acariciar sua própria mãe.

A arte convida o espírito para um delírio que exalta suas potências. A ação da arte sacode a inércia provocada pela peste: resta saber se, neste mundo que desmorona, podemos vislumbrar também o contágio pelas forças da vida, não apenas da morte.

Referências:
ARTAUD, Antonin. O Teatro e seu duplo. Ed. Max Lemonade: São Paulo – 1984
SAFATLE, Vladimir. Bem-vindo ao estado Suicidário. 2020. Disponível em https://n-1edicoes.org/004
NIETZSCHE, Friedrich. 100 Aforismos sobre amor e morte. Penguin/Cia das Letras, 2012.

 

Manolo Kottwitz
Professor de Artes Cênicas/Mestre em Psicologia Social e Cultura

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