Depende. É preciso planejamento e uma base clara e concreta de objetivos para se conquistar grande coisa. Gama investiga como fica a militância online quando sair às ruas não é recomendado
Bem antes da privação do convívio e das ruas, o ímpeto de se fazer escutar vem sendo canalizado para as redes. A pandemia intensificou a polarização que domina as ruas e o ambiente virtual nos últimos anos.
O ativismo digital da quarentena está imerso em um binarismo que vem sendo redesenhado desde o início do isolamento e da queda de popularidade do presidente Jair Bolsonaro.
Em maio de 2020, uma onda de avatares com a imagem de duas bandeiras (uma preta e uma vermelha), associadas a movimentos independentes antifascistas, dominaram as redes sociais.
Assim como, no dia 2 de junho, após o assassinato de George Floyd nos Estados Unidos, o Instagram foi tomado por quadrados pretos, numa tentativa de questionar o racismo e o assassinato sistemático de pessoas negras.
Essa ação foi associada ao movimento #BlackLivesMatter, criado em 2014, e que ganhou uma escala global inédita também pela maneira como a brutalidade sofrida por Floyd foi divulgada: gravada e distribuída quase que simultaneamente nas redes.
“Em poucos minutos o caso circulou no mundo. Foi possível visualizar aquela morte, o jeito como ela aconteceu, os pedidos de clemência. Houve um impacto muito grande também pela rapidez, alcance e escala”, diz a Gama a socióloga Flavia Rios, professora da UFF e pesquisadora do núcleo AFRO/Cebrap.
As duas manifestações, a antifascista e antirracista, ganharam grande alcance virtualmente. No caso antifascista, a bandeira foi adotada inclusive por quem nunca se identificou com o movimento.
Segundo Pablo Ortellado, pesquisador e professor de gestão de políticas públicas da USP, a ação “faz parte do processo de constituição de uma identidade política”. Uma tentativa de acomodar o difuso espectro do antibolsonarismo em uma identidade mais ou menos coesa no atual cenário de polarização.
Mas e na vida offline? Quando o ativismo digital é capaz de trazer resultados? Quem acredita em sua efetividade aposta na capacidade das novas tecnologias de horizontalizar o acesso à informação e ao debate.
Por outro lado, há o empobrecimento da discussão, poucas fontes confiáveis, a polarização e o comprometimento da privacidade e segurança dos usuários. Mas críticos e defensores do ativismo de sofá concordam em uma coisa: sem planejamento e uma base clara e concreta de objetivos não será possível conquistar grande coisa.
As redes sociais têm sido uma grande ferramenta do antirracismo. Muitos jovens e organizações se valeram delas nas suas formas mais diversas: blogs, Facebook, youtubers, sites que trazem denúncias de discriminação racial.
“Tem sido um grande salto qualitativo e quantitativo para as lutas antirracistas no mundo inteiro. Pela capacidade de tornar o indivíduo um agente, alguém que pode relatar, compartilhar, reagir e difundir suas indignações”, diz Flavia Rios. Ela cita o Senti na Pele, uma página de relatos de violência e discriminação de vidas negras.
O Twitter é uma das grandes ferramentas disponíveis que vem se provando eficiente para a pressão popular, mesmo não sendo tão expressivo em número de usuários como o Instagram ou o Facebook.
“Nem sempre o que tem mais alcance é mais importante. Os políticos estão no Twitter, é uma plataforma mais fácil de ser monitorada, as pessoas estão olhando para ela”, explica Ortellado.
Na impossibilidade de ir às ruas, construir um canal com representantes da política institucional pelo Twitter tem chances de ser eficaz. Ortellado cita como exemplo os processos de deliberação de medidas emergenciais adotadas durante a pandemia, como a mobilização que levou o governo a fixar a renda básica no valor de R$ 600.
O projeto partiu de uma articulação com mais de 50 coletivos da sociedade civil na base da videoconferência e nos grupos de Whatsapp e uma campanha reforçada nas mídias sociais.
Há uma distinção entre o ativismo raso, que afaga seu ego mas não faz diferença, e o ativismo baseado em algo que realmente tem significado, estratégia e poder de impacto
As hashtags, que carregam o estigma do ativismo amador, já se provaram capazes de atingir mais gente e ampliar vozes no debate público. Um estudo baseado nas manifestações no Parque Gezi, na Turquia, em 2013, mostra que a chamada “periferia digital” — numerosos internautas que acompanham e comentam as ações somente pela internet — tinha seu papel tanto quanto os que protestavam fisicamente para alcançar mais gente.
A atividade política no mundo digital se diversificou muito desde que as medidas de distanciamento social foram adotadas.
Não só pela crise inédita na história do país, mas porque as pontes entre sociedade civil e o poder público tiveram de ser reconstruídas online. Há menos maneiras físicas de chegar a um parlamentar. Neste momento é tudo por Whatsapp, Zoom e e-mail.
“O hábito de bater na porta de um parlamentar agora só é reproduzível no Whatsapp ou em um telefonema mais pessoal. E isso é um problema porque limita a participação”, explica Pedro Telles, chefe de gabinete da Bancada Ativista e cofundador do Advocacy Hub.
“O adequado para a democracia é que qualquer cidadão possa ter acesso a discussões parlamentares, mesmo com a limitação física que temos hoje. Então estamos em um debate muito grande agora para construir procedimentos adequados de participação digital para as pessoas”.
Segundo Pedro Telles, ativismo de sofá não é mais um termo adequado para a ação política que tomamos de nossas casas, por menor que ela seja. Até porque, hoje em dia, boa parte do ativismo precisa ser feito dessa maneira.
“Eu diria que há uma distinção entre o ativismo raso e sem estratégia, que afaga o seu ego mas não faz uma diferença concreta, e o ativismo baseado em algo que realmente tem um significado, uma estratégia e um poder de impacto. Convencionou-se chamar ativismo de sofá o clique em um botão e [a sensação de] ‘pronto você é ativista’. Se esse clique no botão fizer parte de uma estratégia bem pensada, ele pode fazer a diferença”, explica.
Quando o ativismo digital não funciona
O ativismo digital é mais um campo de disputa, uma ferramenta que precisa ser equilibrada com a política feita fora da internet para que a incidência seja de fato efetiva.
Do contrário, contamos muito com as mobilizações fugazes, que acabam caindo no que entendemos por ativismo de sofá.
Uma petição na internet, trocar um filtro de celular ou corroborar uma hashtag pode não funcionar se não tiver estratégia, eco e perenidade. Não adianta apenas levar uma mensagem mais longe se há carência de substância e especificidade.
A ação digital também é mais fácil de ser ignorada quando não é feita em grande escala. E as causas são tantas que se pulverizam na imensidão da rede.
“É cada vez mais necessário trabalhar em coalizões, construir esforços de campanha e mobilização, um conjunto de atores que unidos conseguem dialogar, mobilizar ou serem vistos como legítimos por base significativa da população”, explica Telles.
O que muitas vezes acontece é que, descolada do universo fora das redes, a pauta se esvazia.
“Há uma mobilização e uma comoção de momento, principalmente essa parcela da sociedade civil branca, classe média alta, que se mobiliza, compartilha coisas, mas ontem um adolescente morreu na Zona Sul e ninguém aparece”, diz a jornalista e ativista Mariana Belmont, que colabora com a Rede Jornalistas das Periferias e a Uneafro Brasil.
“Na raiz do problema [esse tipo de atitude] não transforma as pessoas. É preciso rever o que você está fazendo no dia a dia, dentro da sua casa, do seu trabalho.”
Outro ponto negativo é que, ainda que a internet seja a grande arena política do mundo remoto, ela tem menor penetração nas casas brasileiras do que a televisão — embora o tempo gasto com as redes sociais seja superior ao tempo assistindo à programação televisiva.
No Brasil, 70 milhões de brasileiros têm acesso precário à internet ou nenhum acesso. Entre os cidadãos que usam a rede nas classes D e E, 85% se conectam somente pelo celular e com pacotes de dados limitados.
Dentro das plataformas digitais, o conteúdo político produzido pela grande imprensa já equilibra forças com os sites de conteúdo engajado, muitas vezes com predomínio de fontes alternativas e pouco legítimas.
Mesmo que haja esforços para regular as mídias digitais e frear a disseminação de informações falsas, o que se veicula pelo Whatsapp e outros aplicativos semelhantes é uma batalha à parte.
“No submundo da comunicação por mensagens privadas há predomínio dessas fontes alternativas, inclusive do jogo mais sujo da internet, menos legítimo. E ao que tudo indica é uma forma de muita penetração”, diz Pablo Ortellado.
“O Whatsapp entra no pacote de dados gratuito e consegue atingir praticamente 100% dos usuários de telefonia móvel. Estamos falando de 80% dos brasileiros.”
É fato que na primeira década de Twitter, #BlackLivesMatter figurou entre as dez tags mais compartilhadas. Só que o mau uso da ferramenta também pode contribuir para invisibilizar uma pauta.
Uma pesquisa do Pew Reasearch Center mostra que o uso de #AllLivesMatter — tag criada para relativizar o movimento #BlacklLivesMatter — foi quase igualmente utilizada tanto por críticos como por seus apoiadores entre 2013 e 2016.
Ou seja: mesmo que a intenção fosse ir contra a hashtag e reforçar a necessidade de discutir racismo nas redes, os internautas acabaram agregando popularidade à palavra-chave que defendia a ideia oposta.
Outro problema recente foi o uso de #BlackLivesMatter por desavisados nas postagens que queriam aderir à ação #Blackouttuesday.
A confusão no Instagram encheu a primeira hashtag de quadrados pretos, atrapalhando a busca de manifestantes por informações sobre os protestos de rua que eram veiculados por ela.
Ao mesmo tempo, a expressão de solidariedade ao movimento antirracista no Brasil e nos Estados Unidos despertou uma discussão política dentro da pauta: a superficialidade na adesão de causas via hashtags.
Muitas postagens viralizaram sugerindo que o levante antirracista cibernético não ficasse circunscrito às postagens, e apresentando até medidas — muitas delas também possíveis de se fazer remotamente, é importante frisar — para efetivamente gerar reflexos práticos para além do momento crítico de ação.
Grandes marcas e empresas americanas captaram a movimentação em torno da hashtag e fizeram também suas essas indignações.
O que, aos olhos de muitos, configurou mero oportunismo. “O papel do mundo corporativo é muito decisivo, mas de fato não pode ficar numa hashtag. É preciso adotar medidas institucionais que garantam a diversidade no interior das empresas, desde a entrada dos trainees até as escalas de ascensão e mobilidade no interior das empresas e instituições”, alerta Flavia Rios.
Enquanto perdurar a quarentena, a militância digital desempenha um segundo papel no cotidiano dos isolados, de expressão e pertencimento.
“As redes sociais são o nosso espaço, as nossas ruas. É onde produzimos sentido, encontramos prazer, raiva. É o espaço das emoções. Não há como rolar o feed sem se afetar”, comenta Beatriz Borges Brambilla, professora do curso de psicologia da PUC-SP.
Segundo a pesquisadora, a conjuntura brasileira tem feito com que as pessoas se posicionem mais, repensem, olhem para suas próprias histórias e decisões passadas.
Outro aspecto apontado por Brambilla é a dimensão que se expressar publicamente ganha em um momento de insegurança política e desassistência social. As manifestações também produzem sensação de pertencimento. “O nosso posicionamento é a nossa voz.
As pessoas interagem, concordam, discordam. Isso produz novas experiências para o sujeito”, explica.
E as ações são capazes de extrapolar a dimensão virtual. “Não romantizemos o sofá, mas também não joguemos o sofá fora. É também nele que se produz implicação, movimento, identificação, solidariedade e onde encontramos nossos pares. O único problema é que a gente não pode ficar só no sofá.”
Fonte: Gama Revista