Coluna | Era Sol que me faltava
Reta final da sequência sobre os sete pecados capitais. Nesta semana, adentramos a sexta cornija do purgatório onde encontramos os gulosos, ali o ar é tomado de delicioso aroma exalado por uma árvore coberta de frutos apetecíveis. No entanto, como em vida padeceram aos excessos da mesa, no purgatório, as almas são condenadas a sentir o cheiro mas privadas de comer. Dante descreve as almas deste terraço como emagrecidas de tal modo que sua pele evidencia seus esqueletos.
O pecado da gula se caracteriza por uma continuidade ou permanência do desejo de comer, mesmo quando já aconteceu a saciedade. Se quer comer antes da hora e além do que se deve. A vontade não encontra satisfação e se faz constantemente presente. Notem como isto soa aprisionador, torturante, e de um lamento, afinal, o gozo não se faz percebido. Parece haver alguma conexão entre a experimentação de ocasiões alegres ou felizes com os excessos. Empanturrar-se de um bolo de chocolate, ou beber até a embriaguez pode sim oportunizar prazer, mas quando acontecer de forma ocasional, se for frequente, diário, perde o sentido e passa a adoecer corpo e alma, e nos tornamos apenas obesos e/ou alcoolistas.
No contemporâneo a gula parece autorizada, afinal eu não tenho encontrado ninguém que tema o inferno por comer um pedaço de pizza a mais, ou então, beber uma taça a mais de vinho. Ao mesmo tempo, também parece que trouxemos o inferno para a terra quando o assunto é o nosso contato com a comida. Adoecemos e buscamos saúde através da comida, além da onda “gourmet”, que transformou o cozinhar e o comer em uma ciência do estômago (gastronomia) e trata da alimentação como uma experiência divina e estética. Sobreviver à contradição de comer bem e ter experiências gastronômicas e conseguir manter o corpo magro dos padrões sociais é o verdadeiro desafio. Os excessos à mesa talvez não sejam mais temidos ou sentidos como pecado, mas são percebidos, no mínimo, como extrema “falta de classe”.
A gula está na sexta cornija do purgatório, antes da luxúria porque ambas são consideradas pecados do corpo. Alguns pensadores dizem que a gula é mãe da luxúria, na medida em que alimenta os maus pensamentos, outros afirmam que são irmãs, afinal comer e fazer sexo são duas necessidades, sem comer morremos, e sem sexo morre a espécie, isto diferencia estes dois pecados dos demais. Mas então, se são necessidades, o que faz com que sejam considerados como pecado? o fato de gostarmos, precisamos comer e fazer sexo, mas não deveríamos gostar, se gostarmos, sucumbimos ao desejo. Isto, claro, aos olhos da moral cristã.
Ainda neste sentido do desejo, Santo Agostinho em suas confissões afirma: “Comer demais às vezes se apodera do servo. Eu não temo a pureza da carne mas a impureza do desejo”. Sua afirmação confirma que excessos ocasionais podem ser inevitáveis e prazerosos inclusive, agora, desejar aquilo como necessidade é temeroso.
Temos uma relação séria e importante com a comida e o corpo. Nos tempos antigos, textos denotam que grandes banquetes com vomitórios eram oferecidos pelos mais diversos motivos. Na idade média, evidencia-se a característica de que certa gordura corporal tem ligação com posses financeiras, ao mesmo tempo em que o cristianismo valoriza a magreza e o domínio dos desejos através dos jejuns. Com o renascimento e a chegada da idade moderna, inicia a cultura da “boa mesa” e da necessidade de certo requinte e educação ao comer. Em miúdos, fica evidente como é problemática a nossa relação com o corpo. Vejamos hoje, existem termos para denotar todo tipo de forma física, de anoréxico, bulímico, vigoréxico à obeso, e assim por diante. Sem adentrar as questões da estética corporal que combate os sinais do envelhecimento, isso daria um “pano pra manga” enorme.
Por fim, já foram à alguma festa em que não havia comida ou bebida? diz Savarin: “Os animais saciam-se, o homem come, mas apenas o homem de espírito sabe comer”. No final das contas o problema está na capacidade de não ceder ao desejo que quer nos forçar a enfiar a cara na comida.
Caloroso cumprimento e até semana que vem.
Solange Kappes
Psicóloga CRP 12/15087
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