Comprar em baixa e vender em alta. O norte constante da bolsa de valores ajuda a explicar por que, diante da possibilidade de 2020 ser o pior ano para a economia brasileira desde 1900, investidores do mercado de ações estão otimistas. Em momentos de crise, sempre há quem esteja ganhando, ou ao menos se planejando para ganhar no futuro.
Entre 2017 e 2019, por exemplo, o PIB brasileiro cresceu a taxas que não passaram de 1,3%. Já o Ibovespa cresceu a 26,9% em 2017, 15% em 2018 e 31,6% em 2019. Puxado, entre outros fatores, pelas expectativas de ajuste das contas públicas e pela atratividade dos investimentos de renda variável diante da queda da taxa de juros, o índice atingiu e renovou recordes sequencialmente.
Em 2020, no entanto, o aparente descompasso entre a bolsa e a economia real — observado no exterior também — é mais evidente, porque o novo coronavírus se sobrepôs a qualquer fator macroeconômico que pudesse indicar crescimento. A economia vai encolher. Mas, em meio à crise nacional, não são incomuns previsões de gestores do mercado financeiro segundo as quais, até dezembro de 2020, a bolsa brasileira vai se valorizar o suficiente para voltar ao patamar de valor que tinha antes da pandemia.
Se essa previsão se concretizar, para os investidores que puderem esperar, será como se a mais grave emergência sanitária dos últimos cem anos — que se somou às ameaças à instabilidade institucional do Brasil e à desvalorização recorde da moeda nacional — não tivesse existido, ao menos em termos de resultados econômicos.
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Nesse cenário de aparente descompasso entre a bolsa e a economia do país, vale perguntar: o otimismo dos investidores tem razão de ser? A bolsa é um mundo à parte da indústria, do comércio e dos serviços?
A trajetória da bolsa ao longo do semestre
Quando o assunto é a bolsa de valores no Brasil, é normal olhar para o Ibovespa. O Ibovespa é um índice que reúne as principais ações num pacote pensado para representar a bolsa brasileira, a Bovespa (ou B3). A composição do Ibovespa é reavaliada a cada quatro meses.
O Ibovespa é comumente usado como sinônimo da bolsa brasileira, mas é só um índice. A bolsa é composta por mais empresas, indo além daquelas que são contempladas no índice. Por convenção, quando se diz que a bolsa subiu 1%, quer dizer que o valor do Ibovespa em pontos aumentou 1%. Saiu, por exemplo, de 100 mil para 101 mil pontos.
Nos primeiros meses de 2020, o Ibovespa sofreu uma forte queda, mas conseguiu se recuperar parcialmente.
Nos primeiros 50 dias do ano, o Ibovespa ficou praticamente estável, flutuando na faixa dos 115 mil pontos. Essa pontuação reflete o valor do conjunto das ações consideradas pelo índice, considerada a importância de cada uma e portanto seu peso no pacote de ativos que forma o Ibovespa.
No entanto, o cenário mudou na virada de fevereiro para março. As bolsas do mundo todo, que já caíam em razão da preocupação dos mercados com o avanço do coronavírus em diversos lugares do mundo, sofreram dois baques, num curto espaço de tempo.
Na semana útil entre 9 e 13 de março, o valor do barril de petróleo tombou, e a OMS decretou que o avanço do coronavírus no mundo passava a configurar uma pandemia. O resultado foram bolsas despencando no mundo inteiro.
Não foi diferente no Brasil, que ainda teve um agravante: o presidente Jair Bolsonaro, então com suspeita de estar contagiado pela covid-19, abriu uma crise institucional ao promover e ir a um ato contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal em Brasília. Em 23 de março, o Ibovespa atingiu seu ponto mais baixo no ano, acumulando uma desvalorização de 45% em relação ao início de 2020.
Após passar a maior parte de abril estável na faixa dos 80 mil pontos, o Ibovespa voltou a crescer em maio e junho. Por mais que a curva do crescimento tenha sido tímida, ela ajudou a recuperar parte das perdas dos primeiros meses do ano.
No segundo trimestre de 2020, a bolsa cresceu 30,2%, no melhor resultado para o período desde 1997. Mas o avanço não foi o suficiente para recuperar as perdas do primeiro trimestre, e o Ibovespa fechou o semestre com queda acumulada de 17,8%.
A economia brasileira na pandemia
O primeiro semestre de 2020 também foi marcado pelo início de uma nova recessão no Brasil. O impacto da pandemia sobre uma economia que ainda não havia se recuperado totalmente da crise iniciada em 2014 foi muito forte.
No primeiro trimestre, o PIB — Produto Interno Bruto, que mede todos os bens e serviços produzidos em um lugar em determinado período — caiu 1,5% na comparação com o fim de 2019.
Para o segundo trimestre, as projeções são de queda maior ainda. Dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) mostraram que em abril de 2020 os tombos da indústria, do comércio e dos serviços no Brasil foram de 18,8%, 16,8% e 11,7%, respectivamente.
Para o ministro da Economia, Paulo Guedes, os números indicam que abril foi o mês em que o país atingiu “o fundo do poço”, em termos econômicos.
Como um todo, a expectativa entre economistas é de que a economia brasileira deve sofrer em 2020 sua pior retração anual desde 1900, primeiro ano da série do PIB (Produto Interno Bruto).
-6,54% é a variação esperada para o PIB brasileiro de 2020, na comparação com o ano anterior, pela mediana de diferentes projeções divulgadas até o final de junho.
Ao mesmo tempo em que mergulha na crise econômica, o Brasil também é um dos piores países em que a evolução da covid-19 é a mais grande. Em 1° de julho, o país registrava mais de 60 mil mortos e 1,4 milhão de infectados — atrás apenas dos EUA.
Nos primeiros três meses do ano, o recuo da bolsa de São Paulo foi muito mais forte do que do PIB. Mas o avanço do Ibovespa no segundo trimestre ocorreu enquanto a economia real (produtiva) registrava seus piores números, e o país falhava na missão de conter a disseminação do coronavírus pela população.
As bolsas estrangeiras na pandemia
No primeiro semestre de 2020, as bolsas de valores de outros países tiveram movimentos similares àquele observado na bolsa de São Paulo. No geral, o segundo trimestre foi positivo, mas não o suficiente para compensar as perdas do primeiro.
O gráfico abaixo acima mostra o desempenho de outros índices financeiros nos primeiros seis meses de 2020. Os cinco índices retratados são: Dow Jones, um dos principais índices da bolsa de Nova York; DAX, da bolsa de Frankfurt, na Alemanha; FTSE 100, da bolsa de Londres; CAC 40, da bolsa de Paris; e Euro Stoxx, índice pan-europeu. Em cada um dos lugares onde esses índices operam, a evolução da pandemia foi diferente. Houve lugares, como a Alemanha, em que o avanço da covid-19 foi contido com mais sucesso do que outros países, como os EUA, país recordista de casos e mortes.
Na comparação com todos esses índices, o Ibovespa foi mais volátil. Isso significa que teve queda mais forte no primeiro trimestre, mas recuperação mais acentuada no segundo. No total do semestre, a queda do Ibovespa (17,8%) só foi menor que do FTSE 100, de Londres (18,2%).
Os números sob análise
O Nexo conversou com dois economistas sobre o comportamento da Bovespa durante a pandemia do novo coronavírus, as expectativas para os próximos meses e a relação entre o desempenho da bolsa e a economia nacional.
- Claudia Yoshinaga, coordenadora do Centro de Estudos em Finanças da FGV Eaesp
- Rodrigo Lanna, professor de economia da Unicamp
O que tem marcado o comportamento da bolsa brasileira durante a pandemia?
CLAUDIA YOSHINAGA – O momento é marcado pela grande volatilidade da bolsa brasileira. Analisando o histórico do Ibovespa de 2001 até a pandemia, nada provocou tanta volatilidade na bolsa como a pandemia de covid-19. Comparando com importantes eventos passados — crise do subprime [que estourou nos Estados Unidos e contaminou os mercados financeiros de todo o mundo em 2008], reeleição de Dilma Rousseff [em outubro de 2014], greve dos caminhoneiros [em maio de 2018], Joesley Day [18 de maio de 2017, quando o vazamento de uma conversa entre o então presidente Michel Temer e Joesley Batista, um dos donos do frigorífico JBS, desestabilizou a política nacional] — março de 2020 foi o mês mais duro para a bolsa brasileira. E foi aí que a volatilidade explodiu.
A Bovespa [bolsa brasileira] foi a que mais se desvalorizou entre as principais bolsas do mundo no mês de março. Então se vê que, em relação ao impacto da pandemia, o Brasil foi o que respondeu de maneira pior, em termos de desvalorização. Isso se explica por fatores como incertezas em relação às políticas econômicas e sanitárias, diferenças regionais, falta de transparência. Falta de transparência dos dados oficiais em relação à pandemia, assim como das políticas públicas de crédito para os microempresários. Nesse cenário de opacidade, cada um começa a criar uma narrativa própria, de acordo com as próprias convicções.
Por outro lado, em abril e maio, essa alta volatilidade se traduziu em recuperação para a nossa bolsa. No mês de maio, a nossa bolsa foi a que mais subiu, na comparação internacional. Em junho, foi a segunda, atrás apenas da Shenzhen, na China. Mas no todo ainda estamos perdendo. Olhando para o semestre inteiro, ainda estamos com uma desvalorização de 17,8% do Ibovespa em relação ao início do ano.
RODRIGO LANNA – É um comportamento marcado por alta volatilidade dada a efetivação de um risco sistêmico fruto da pandemia. Para se ter ideia, se tivesse R$ 1000 aplicados no início do ano, teria algo em torno de R$ 535 no final de fevereiro — uma queda próxima à 50%. Por outro lado, verifica-se, de fevereiro para cá, uma recuperação gradual. Mesmo assim é importante notar que, voltando ao exemplo, a aplicação realizada anteriormente no início do ano estaria no início de junho em por volta de R$ 800 (20% de perda).
Por que há expectativas de recuperação rápida do Ibovespa, a índices semelhantes aos de antes da pandemia até o final de 2020, se a tendência para a economia em geral é de queda forte?
CLAUDIA YOSHINAGA – O Ibovespa especificamente reflete muito de setor financeiro (bancos e seguradoras) — é o setor que tem maior presença no índice. Essas empresas apresentavam até final de maio retornos acumulados bastante negativos. Mas uma recuperação delas pode puxar bastante o índice. O Ibovespa também é puxado por empresas de varejo de e-commerce, que valorizaram muito nesse período. Ou seja, é um grupo muito seleto de empresas, que não necessariamente vão sofrer as mesmas agruras das outras empresas que formam o Brasil.
Além disso, fatores externos também têm influenciado muito a bolsa brasileira. Ultimamente quando [a bolsa] sobe é muito mais por reflexo do que acontece lá fora. Como aqui no Brasil o grau de incerteza é muito forte, os investidores olham lá para fora para pelo menos terem um parâmetro. E, por exemplo, na Europa o comércio voltou a vender bastante depois da reabertura. A recuperação parece ser em um “V” super acentuado, porque está recuperando muito rápido. Então esse grau de otimismo é incorporado à bolsa aqui, e a bolsa sobe.
Assim, não é impossível isso [uma recuperação total em relação ao início da pandemia] chegar a acontecer. O que não dá para dizer é que é um movimento sustentável. O otimismo não fica em pé durante muito tempo só com esses fatores externos. E não sabemos qual será o impacto e a sustentabilidade dessa reabertura [da economia, em meio à pandemia]. A bolsa pode subir, mas ela não persiste nesse nível, se as coisas aqui não ficarem boas.
RODRIGO LANNA – Difícil realizar projeções em um cenário tão incerto. De um lado, a queda do Ibovespa foi muito grande — note que o índice caiu para quase metade em pouco mais de dois meses. Algumas empresas chegaram a ter valor de mercado inferior ao seu valor patrimonial. A queda foi muito forte, é natural que exista uma recuperação gradual.
Em relação às expectativas de alta, existem diversos vários componentes em jogo: taxas de juros nos menores patamares históricos, tendência de aumento dos preços das commodities, maior liquidez internacional, expectativa de descoberta da vacina e otimismo com a reabertura econômica. No entanto, é preciso ter muita cautela com tais projeções, pois os riscos ainda são bem elevados no país. As incertezas ainda são muito grandes na saúde, na economia e na política.
Qual costuma ser a relação da bolsa brasileira com a realidade econômica do país? Há algo de diferente na pandemia ou esse descompasso se assemelha a outros momentos?
CLAUDIA YOSHINAGA – A grande diferença entre as projeções para a bolsa e você abrir a janela e ver o mundo é que, quando falamos da nossa bolsa, estamos falando de uma quantidade pequena de empresas. E nossa bolsa tem uma presença muito forte de bancos, de empresas de energia elétrica, numa proporção que não é a que esses setores representam na nossa economia como um todo. Ainda que existam na bolsa as small caps [empresas de valor mais baixo no mercado], elas são as pequenas das grandes empresas. O pequeno restaurante, a loja de shopping, em geral não estão representados. Então talvez a grande crítica que podemos fazer é que a bolsa não representa o Brasil de fato. Existe esse descolamento [entre bolsa e a economia nacional].
Na pandemia, esse descompasso se acentua. Porque as empresas que estão na bolsa são grandes e em geral têm bem mais condições de terem fôlego financeiro. Esse é um grande ponto nesse momento. Mesmo setores que foram muito afetados na pandemia, como o das companhias aéreas, são de empresas grandes o bastante para conseguirem ter caixa ou pelo menos crédito para aguentar esse período. Já quando falamos de pequenas empresas, economia real (o Brasil é essencialmente pequenas e médias empresas), elas não têm fôlego de caixa para aguentarem três meses fechadas. Então o impacto foi muito diferente para essas empresas.
RODRIGO LANNA – As bolsas, em condições normais, costumam ser bons termômetros da evolução da economia. No entanto, neste momento, é perceptível um descolamento entre a bolsa e a economia real.
Temos um processo de aumento significativo da liquidez nas economias mundiais com os pacotes emergenciais de ajuda dos bancos centrais, paralelo a uma provável retomada da atividade econômica em importantes países do mundo. Porém, no Brasil, o quadro ainda é incerto em relação à pandemia e aos rumos da economia. Na verdade, as expectativas para a economia real são bastante pessimistas. Como as cotações das ações são formadas pela expectativa do desempenho operacional das companhias, não cumprindo tal expectativa, a tendência será de queda nos preços.
Podemos estar vivenciando um quadro de narrativa irracional, algo apontado pelo Nobel de Economia, Robert Shiller. Sob uma narrativa atraente de recuperação, podemos estar experimentando um comportamento de manada, especialmente formado e “alimentado” em um ambiente de taxa de juros em patamares mínimos históricos. A profecia pode ser autorrealizável [o comportamento otimista dos investidores pode gerar uma melhora da bolsa], mas em algum momento os fundamentos [da economia] se impõem.
Fonte: Nexo