Em maio, a cantora Anitta começou a tomar lições de política com a advogada e comentarista de TV Gabriela Prioli. Em uma série de lives transmitidas pelo Instagram da cantora – e assistidas por milhões de pessoas –, Anitta tira dúvidas e aprende com Prioli os fundamentos do assunto.
Segundo a cantora, a decisão de aprender mais sobre política foi motivada pela recorrente cobrança para que ela se posicionasse publicamente diante de temas do noticiário. “Na internet as pessoas cobram tanto que a gente tenha uma posição política que fez eu me questionar:
‘Como vou ter uma posição se eu não entendo nada do que estão me pedindo? Preciso começar a entender’”, disse em entrevista ao programa Conversa com Bial, da TV Globo.
A pressão sobre Anitta foi especialmente forte durante as eleições de 2018, quando fãs cobraram que a cantora se posicionasse contra o então candidato Jair Bolsonaro e aderisse ao movimento #EleNão.
“O silêncio ensurdecedor” da cantora chegou a virar meme, sendo aplicado a todo e qualquer assunto nas redes sociais como forma de piada.
Anitta não é a única a sofrer esse tipo de cobrança. O jogador de futebol Neymar foi recentemente chamado a se pronunciar contra o racismo que tem provocado protestos no Brasil e nos EUA. Após as críticas, o jogador publicou em seu Instagram uma imagem toda preta com a hashtag #BlackLivesMatter na legenda.
O caso de Felipe Neto
O influenciador digital Felipe Neto havia ironizado a falta de posicionamento do jogador, mas apagou o tuíte. Ativistas negros chamaram sua atenção para o fato de não caber a pessoas brancas cobrar de pessoas negras uma posição sobre o racismo.
Um dos maiores e mais longevos influencers da internet brasileira, Felipe Neto vem revendo, em anos recentes, declarações preconceituosas do passado e tem feito oposição ao governo Bolsonaro.
Felipe Neto cobra atitude semelhante de artistas e outras figuras públicas, e deixou de seguir personalidades “isentonas”, que evitam se posicionar. Em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, o influenciador justificou sua cobrança, afirmando que diante de ações antidemocráticas do presidente e seus ministros o silêncio não é mais uma opção.
Ele também enfatizou a importância, em certos momentos, de escutar e dar espaço para deixar falar quem sabe mais. “Uma das coisas que a maturidade me trouxe foi que às vezes é bom calar a boca, apenas ouvir e não falar nada. E às vezes é bom dar voz a quem tem autoridade para falar sobre determinado assunto. Foi assim que eu comecei a aprender mais sobre as causas sociais do Brasil e a me humanizar”, disse no programa.
Nessa toada, algumas celebridades com grande número de seguidores têm optado por ceder suas redes sociais para serem “ocupadas” por ativistas e especialistas em temas como a questão racial.
‘Não se posicionar já é uma posição’
No caso de Anitta, a expectativa de um posicionamento contrário a Jair Bolsonaro se nutre também de sua identificação com a comunidade LGBTI, que compõe uma parcela significativa de sua base de fãs. Embora não tenha se posicionado de imediato contra um candidato com discurso homofóbico, a cantora havia se apresentado na Parada do Orgulho LGBTI e participado de campanhas contra a homofobia. Ela passou a ser acusada de oportunismo e de agir em função do “pink money”, o poder de consumo de LGBTIs.
Como Felipe Neto, muitos argumentam que, com a ascensão da extrema direita no Brasil, não se posicionar politicamente já é uma posição.
“Anitta quer ser uma cantora, performer, intérprete, não uma artista. Quer ter o papel de figura pública completamente apolítica e neutra para que possa atingir o maior público possível, ser tão vendável quanto a indústria lhe permite ser. Há um momento, porém, em que a neutralidade perde seu aspecto positivo e passa a ser omissão. Enquanto faz de tudo pra não sair queimada por sua posição política, Anitta pode acabar penando pela falta dela”, escreveu a jornalista Amanda Cavalcanti para a revista Vice em 2018.
A ascensão das redes e o contexto
Ao Nexo o sociólogo e professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo Luis Eduardo Tavares disse que a cobrança por um posicionamento político de famosos se intensificou recentemente com o uso das redes sociais, mas atribui o aumento dessa pressão principalmente ao contexto político atual.
“Já faz um tempo que a política vem abarcando as mais diferentes esferas da vida (andar de bicicleta, fazer parto natural, só para dar alguns exemplos) e as celebridades também são envolvidas nisso”, afirmou. “As redes sociais são parte disso porque estimulam as pessoas a dizer o que estão pensando o tempo todo. Além disso, durante um governo como o de Bolsonaro, que veio para causar rupturas, se torna muito difícil não se posicionar”.
A afirmação de Tavares lembra o poema “Filhos da época”, da poeta polonesa Wislawa Szymborska (1923-2012), que diz que “somos filhos da época e a época é política”. “O que você diz tem ressonância, o que silencia tem um eco de um jeito ou de outro político”, prossegue o poema escrito em 1986, nos últimos anos da Polônia sob domínio soviético.
Para Luiz Peres-Neto, professor do programa de pós-graduação em Comunicação e Práticas de Consumo da ESPM, a cobrança política mais intensa exercida sobre famosos na internet é um processo natural.
Segundo ele, as redes passaram a ocupar o espaço de mídias tradicionais no consumo de informação das pessoas e a política, “agora não mais apenas das disputas partidárias, mas como fenômeno que nos afeta, está cada dia mais presente nas redes”, disse ao Nexo.
“Personalidades que se posicionavam nos anos 1980 ou 1990, por exemplo, eram cobradas pelo público de uma maneira muito mais indireta. Hoje, a interação direta exige uma responsabilidade muito mais autêntica, direta e sincera”, afirmou Peres-Neto.
O risco de desgaste público
A hesitação em falar de política tem ligação, em parte, com o risco de desagradar o público. O professor Luis Eduardo Tavares afirma que, para alguém com muita projeção, engajar-se politicamente pode ter consequências desagradáveis. “Celebridades que se meteram a falar de política nos últimos tempos têm colhido muitos dissabores e aprendido o que muitos já aprenderam antes deles, que política não é brincadeira”, disse.
Tavares cita o rapper Emicida, que defendeu em suas redes sociais no início de junho a não adesão às manifestações durante a pandemia de coronavírus.
“Nesse último final de semana, vimos o Emicida se apresentando nas redes quase como uma liderança política ao dizer para as pessoas não participarem de um movimento de massa. Sem querer discutir se ele estava certo ou errado, o fato é que ele está sentindo as consequências disso”, disse Tavares ao Nexo.
“Se posicionar politicamente na mídia sempre é um risco e o não posicionamento também pode ser. Muitos preferem silenciar para evitar o risco, mas num ambiente tomado pela política o silêncio acaba sendo entendido como cumplicidade com o governo”.
‘A era do media-training acabou’
Ambos os especialistas ouvidos pelo Nexo consideram legítima a cobrança de posicionamento político de celebridades pelo público.
“Quem quiser deslegitimar as cobranças e o debate político que ocorre nas redes sociais digitais simplesmente não entendeu nada do que ocorreu nos últimos dez anos no Brasil e no mundo, muito menos o turbilhão que vivemos desde o nefasto impedimento da presidenta Dilma”, disse o professor Luiz Peres-Neto.
O fato de famosos alcançarem muitas pessoas, por terem milhares ou milhões de seguidores, torna importante que se pronunciem e justifica serem cobrados, afirma o sociólogo Luis Eduardo Tavares. “[A cobrança] é legítima com certeza, pois são cidadãos e como tais estão inseridos na esfera pública”, disse ao Nexo.
Para Tavares, o fato dessas figuras passarem a se posicionar contribui para “politizar espaços que sempre foram dominados por banalidades, pensando no caso das aulas de política da Gabriela para Anitta” e enriquece o debate público por estimular a participação de mais pessoas.
“Certos artistas-celebridades da música popular, cinema, teatro sempre foram politizados, em geral com posicionamentos de esquerda. Eles continuam participando de debates políticos, mas parecem ter pouca influência nos últimos anos, já que a esquerda vem sofrendo derrotas consecutivas. Isso faz pensar em qual é a capacidade de um artista influenciar o debate político. A novidade agora é que artistas-celebridades, que tradicionalmente nunca se manifestaram, estão sendo convocados a fazê-lo”
Uma vigilância nem sempre sadia
Há também aspectos negativos dessa cobrança, para os quais atenta o professor Luiz Peres-Neto. Ele afirma que há uma vigilância contínua do público, nem sempre sadia ou civilizada, frequentemente imatura e sem apreço pelo pluralismo de ideias.
“Errar ou cometer uma gafe, nesse cenário, pode ser uma tragédia”, disse Peres-Neto ao Nexo. “Porém, muitos influenciadores descobriram que há um outro caminho. Perceberam algumas mudanças nas dinâmicas das redes e que a melhor maneira de lidar com as cobranças por um posicionamento político era ser autêntico, respeitando fatos e quem não pensa como você, admitindo erros, humanizando-se, sem medo do pulso dos haters ou das caixas de comentários. A era do media-training acabou”.
Fonte: Nexo Jornal