Coluna: Economia às Avessas
Nesta semana, deixo esse espaço para um texto de autoria do professor Lauro Mattei.
Inicialmente, é importante recordar que a economia brasileira já vinha capenga desde 2015, uma vez que o PIB apresentou, em média, taxa de crescimento negativa da ordem de 0,90% ao ano entre 2015 e 2019.
Uma economia nessas condições e sendo afetada diretamente pela crise decorrente da COVID-19 teria enormes desafios pela frente. De um modo geral, essa situação indicava que o governo federal precisava atuar rapidamente em três frentes essenciais: garantir a solvência das empresas, sobretudo disponibilizando recursos financeiros para capital de giro para que elas continuassem funcionando; garantir a manutenção dos níveis de emprego e de salários dos trabalhadores; e atender aos segmentos mais vulneráveis da população que, além de excluídos economicamente, estão mais expostos à própria epidemia.
Infelizmente, não parece ter sido essa a opção da área econômica do governo brasileiro, uma vez que a maioria das medidas até agora anunciadas em conta-gotas, além de ser tímidas e pouco eficientes para enfrentar as três dimensões acima expostas, demoraram muito para ser implementadas.
Particularmente no caso em apreço, a falta de ações efetivas, além de prejudicar o funcionamento empresarial, está estimulando o desemprego, fato que poderá levar a um caos social caso a epidemia do novo coronavírus continue presente em todas as regiões do país.
Maiores detalhes a respeito serão retomados na parte final do artigo.
De forma objetiva, verifica-se que até os dias atuais ocorreram apenas duas linhas de intervenção no sentido de apoiar os segmentos empresariais aqui considerados:
1ª) Política de Apoio às Pequenas e Médias Empresas:
No dia 27.03.2020, exatamente um mês após ter sido detectado o primeiro caso da COVID-19 no Brasil, o governo federal anunciou um programa de crédito emergencial para as pequenas e médias empresas, sob a coordenação do Banco Central do Brasil (BACEN). O montante de recursos anunciado foi da ordem de R$ 40 bilhões destinados ao financiamento dos salários dos empregados das pequenas e médias empresas.
A ideia era que esse montante cobrisse dois meses de salários, cujo limite de financiamento é de dois salários mínimos por funcionário. As regras definidas por esse programa foram: financiamento para empresas com faturamento entre R$ 360 mil a R$ 10 milhões por ano; carência de seis meses e prazo de 36 meses para pagamento do empréstimo com taxas de juros de 3,75% ao ano.
Como regra geral, ficou estabelecido que toda empresa que fizesse parte do programa não poderia demitir nenhum empregado.O mecanismo de financiamento deveria funcionar da seguinte forma: a empresa fecharia o contrato com o banco e o dinheiro iria direto para folha de pagamento, ou seja, o recurso cairia direto no CPF do empregado, ficando a dívida registrada para a empresa.
A operacionalização do programa seria feita pelo BNDES em parceria com bancos privados. Do total de recursos previstos (R$ 40 bilhões), 85% seriam aportados pelo Tesouro Nacional e 15% pelos bancos privados, que ficariam responsáveis pela assinatura dos contratos e pelo repasse dos recursos aos trabalhadores.
No dia 03.04.20 o governo federal editou uma Medida Provisória (MP) instituindo oficialmente essa ação denominada de “Programa Emergencial de Suporte a Empregos”, mas que, na verdade, destinava-se às pequenas e médias empresas.
Decorridos mais de dois meses do anúncio dessa medida, é importante fazer um pequeno balanço de seus resultados. Ao final do mês de maio de 2020 mais de 80% dos possíveis beneficiários não tiveram acesso a essa linha de crédito e, segundo o SEBRAE, ao redor de 60% daqueles empresários que buscaram o crédito tiveram seus pedidos negados.
Dentre os principais entraves relatados, destacam-se: o custo elevado do crédito; demora para os recursos estarem disponíveis; burocracia excessiva para obter empréstimos; recursos para financiamento da folha de pagamento não disponíveis; lista de documentos exigidos atípica em relação ao período excepcional que está em curso, chegando-se ao ponto de alguns agentes financeiros exigirem um imóvel como garantia; obrigatoriedade da folha de pagamento ser processado no banco participante do programa, etc.
Com isso, dados do início de junho do próprio BNDES revelaram que menos de 10% do volume de recursos, ou seja, R$ 4 bilhões, tinha sido utilizado, significando que não mais do que 2% do público a ser atendido estava contemplado pelo programa.
Além disso, do total de mais de 17 milhões de empresas existentes nesses segmentos empresariais aqui tratados, aproximadamente 190 mil conseguiram acessar ao crédito anunciado. Essas informações representam um fracasso total dessa política com consequências danosas para o conjunto da sociedade.
Procurada por diversos meios de comunicação, a Federação Brasileira dos Bancos (FEBRABAN) reconheceu que as medidas anunciadas realmente ainda não tinham chegado a esses setores empresariais priorizados.
E justificou os problemas em função do atraso na regulamentação das medidas anunciadas por parte do BACEN, mas garantiu que todos os bancos iriam atender as condições anunciadas no caso específico do financiamento para folha de pagamento.
De fato, apenas no dia 01.06.20, portanto mais de dois meses após o anúncio desse programa, o governo editou a MP 975/2020 instituindo o Fundo Garantidor de Investimentos (FGI), com recursos da ordem de R$ 20 bilhões e tendo a função de garantir os pedidos de empréstimos feitos até 31.12.20, ou seja, o FGI irá atuar como garantidor do risco assumido pelo banco habilitado no programa, isto porque as instituições financeiras, diante da crise atual, sistematicamente estavam negando as mais variadas solicitações de recursos por parte de pequenos e médios empresários.
Registre-se, no entanto, que tal MP alterou o horizonte original do programa que era restrito às empresas com faturamento anual entre R$ 360 mil a R$ 10 milhões. Pela nova norma, esse limite foi ampliado em até R$ 300 milhões.
Essa ampliação nos parece problemática, uma vez que a própria FEBRABAN informou que de todos os recursos financeiros disponíveis nos meses de março e abril, a maioria absoluta foi tomada pelas grandes empresas. Isso significou um montante de mais de R$ 367 bilhões em apenas dois meses.
2ª) Programa Nacional de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (PRONAMPE)
No dia 07.04.20 o Senado Federal aprovou projeto denominado de “Programa Nacional de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Pronampe)”, criando uma linha específica de crédito para esse tipo de empresas, com objetivo de fortalecer as atividades desse setor durante a pandemia do coronavírus.
O valor máximo do empréstimo foi limitado em até R$ 2,4 milhões, sendo que as microempresas (com faturamento em 2019 de até R$ 360 mil) teriam um limite de crédito de até R$ 180 mil, enquanto que as pequenas empresas (com faturamento até R$ 4,8 milhões) poderiam acessar até R$ 2,4 milhões.
O programa deveria ser operacionalizado pelo Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal e poderia ser acessado até o final de junho de 2020. Sobre tal tipo de empréstimos incidiria uma taxa de juros de 3,75% ao ano, sendo que a dívida deveria ser paga em 36 parcelas mensais, com a primeira parcela vencendo seis meses após a concessão do crédito.
O montante dos recursos destinado ao PRONAMPE deveria ser de R$ 13,6 bilhões, sendo que 80% desses recursos deveriam ser repassados pelo Tesouro Nacional e o restante pelo BB e CEF. Tal projeto, com pequenas alterações foi aprovado pela Câmara dos Deputados na sequência e encaminhado para ser sancionado pelo Presidente da República.
O problema é que tal proposta ficou parada na presidência até dia 18.05.20, tendo sido promulgado, com diversos vetos, na referida data por meio da Lei 13.999/2020. Dessa data até o final de maio, equipes do ministério da economia ficaram prometendo uma MP para operacionalização do programa, a qual não era editada de acordo com o prometido.
Finalmente, em 02.06.20 foi promulgada a MP 975/2020, porém com diversas alterações na Lei 13.999, sendo que a principal delas permitiu que o Fundo Garantidor de Operações (FGO) cobrisse 100% das operações creditícias, uma vez que a lei previa apenas 85%.
Esse fundo, com função semelhante ao FGI para pequenas e médias empresas, será gerido pelo Banco do Brasil. Com isso, o governo espera destravar essa parte relativa ao acesso ao crédito.
Mas uma breve atenção aos fatos revela que neste caso se sobressai a letargia por parte das autoridades econômicas, uma vez que desde o início de maio já era visível a necessidade dessa medida, porém poucas iniciativas foram tomadas nesta direção. Na verdade, é bem provável que essa lentidão encontre explicações na frase em epígrafe no início desse artigo.
O fracasso da política econômica de apoio às micro, pequena e médias empresas
Ao analisar o conjunto das ações econômicas para fazer frente ao problema causado pelo novo coronavírus, chega-se à conclusão que o governo não tem um Plano de Ações organizado e articulado para amenizar os impactos da pandemia sobre as atividades econômicas.
O que se viu até o momento foram anúncios espalhafatosos e a conta-gotas de montantes de recursos, porém muito deles com poucos efeitos práticos, como foram os casos dos anúncios midiáticos em pleno domingo de apoio às pequenas e médias empresas e em relação ao próprio PRONAMPE que, diga-se de passagem, foi uma iniciativa do Congresso Nacional.
Além disso, o que vem chamando atenção é a letargia da equipe econômica em relação aos encaminhamentos necessários posteriormente aos montantes anunciados. Com isso, observa-se que esses montantes praticamente não chegam aos agentes econômicos, especialmente desses segmentos empresariais considerados, obrigando-os a tomarem medidas drásticas, sendo que a mais comum delas é colocar em marcha um processo de demissões.
Considerando-se a falta de recursos para folha de pagamento dos salários e a própria expectativa que se formou de que a recuperação econômica será bem mais lenta do que vem sendo anunciado pelos blefes constantes do espalhafatoso Ministro da Economia, parece não restar outro caminho a esses segmentos empresariais.
Dentre esses segmentos empresariais, os setores mais prejudicados atuam nas seguintes atividades: comércio em geral; serviços culturais e de entretenimento; bares, restaurantes e similares; alimentação; transportes públicos; indústria do vestuário e da moda; atividades turísticas; hotéis e pousadas; academias de atividades físicas; etc. Já os setores menos afetados foram os pets shops, serviços veterinários, oficinas e peças locomotivas, serviços empresariais de segurança e informações, etc.
Claramente apenas dois setores apresentaram crescimento neste período de pandemia: produtos farmacêuticos e produtos de limpeza e higiene pessoal.
Esse comportamento provocou, por um lado, aumento da ociosidade da capacidade produtiva instalada, cuja projeções remetem aos patamares do primeiro ano do presente século e, por outro, um processo acelerado de demissões, tendo em vista que são exatamente os tipos de empresas aqui consideradas aquelas que mais empregam no país.
O resultado mais visível foi a explosão do número de pedidos do seguro desemprego no mês de maio. Para se ter uma ideia da dimensão desse processo em curso, basta informar que entre os meses de março e maio foram contabilizados 2,245 milhões de pedidos.
Em síntese, pode-se afirmar que as medidas anunciadas pelo governo para esses setores empresariais, além de paliativas, não estão sendo viabilizadas pelo sistema bancário e financeiro. Esses fatos nos mostram o quanto a falta de um plano global de ação do governo federal está sendo negativa neste momento de crise, uma vez que a sustentação financeira das empresas é uma condição fundamental também para a sustentação dos empregos e dos salários.
É exatamente nesta conexão que as medidas anteriormente mencionadas falharam. Para analistas de diversas matrizes do pensamento econômico, o melhor teria sido o governo, via Tesouro Nacional, ter disponibilizado o dinheiro diretamente a essas empresas porque elas certamente iriam garantir os empregos.
Mas essa proposta esbarra na lógica que prevalece na cabeça da atual equipe econômica que somente sabe tocar a música da velha e surrada cartilha econômica neoliberal.
Neste sentido, gostaríamos de deixar claro que quem efetivamente está matando os segmentos dos micro, pequenos e médios empresários não é o novo coronavírus, mas sim o vírus da ideologia econômica neoliberal que contaminou a política econômica em associação com a letargia que tomou conta da equipe ministerial que comanda a economia do país.
*Publicado originalmente em: www.necat.ufsc.br
Fonte: Lauro Mattei
Professor Titular do Departamento de Economia e Relações Internacionais e Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Administração, ambos da UFSC. Coordenador geral do NECAT-UFSC e Pesquisador do OPPA/CPDA/UFRRJ. Email: l.mattei@ufsc.br