O advogado Pedro Trengrouse esclarece as principais dúvidas sobre redução de salário, contratos, volta aos treinos e temas que envolvem a relação clube, jogador e patrocinadores
Já são dois meses sem futebol no Brasil, por conta da pandemia da Covid-19. Desde que os campeonatos foram interrompidos, clubes e jogadores passaram a viver uma nova realidade. O debate sobre campo e bola, escalação e contratações deu lugar a novos temas: redução de salário, renegociação de contrato, rompimento com patrocinadores e o tão esperado retorno das atividades.
Para esclarecer as dúvidas e entender quais são os direitos dos clubes e dos jogadores nessa nova relação, a reportagem do Esporte Interativo conversou com o advogado Pedro Trengrouse, referência para os negócios da indústria do esporte. Confira na FAQ o que o seu clube pode ou não fazer nesse período de pandemia:
Sim, podem. Uma coisa não impede a outra. É importante ressaltar que negociação não se confunde com imposição e é óbvio que negociar redução salarial com salário atrasado fica muito mais difícil.
Quais são os direitos dos clubes na relação com os patrocinadores que estão quebrando contrato?
É preciso analisar caso a caso e é bem possível que a legislação, em algum momento, estabeleça que essa pandemia deve ser considerada um evento de força maior para todos os fins, como já aconteceu na esfera trabalhista com a MP 927.
Ainda é bem provável que a jurisprudência o faça independentemente de Lei, mas de qualquer forma é preciso muito bom senso e prudência no tratamento das relações jurídicas afetadas para evitar maiores prejuízos futuros, principalmente porque o desafio agora é manter os circuitos que movimentam a economia funcionando.
O advogado Amir Bocayuva publicou recentemente um artigo brilhante que alertava: “É natural que, diante de toda essa crise e das incertezas por ela geradas, empresários e CEOs procurem proteção no Direito a fim de preservar o interesse de suas empresas.
Se, por um lado, nós, advogados, temos o dever de orientar nossos clientes de maneira responsável e ética, em relação às mais variadas questões que já estão e seguirão surgindo, visando a alcançar os objetivos por eles almejados, por outro, não devemos perder de vista que estamos diante de uma crise global que atinge todos os setores da economia e toda a cadeia produtiva.
Os fundamentos utilizados nas orientações dadas a um cliente, com o fim de permitir a revisão ou extinção de contratos ou a postergação no cumprimento de obrigações, poderão ser utilizados na outra ponta das relações contratuais, contra o mesmo cliente, para a mesma finalidade.”
Os atletas podem exigir algum tipo de seguro de risco por voltar a jogar na pandemia?
Quanto aos atletas exigirem algum tipo de seguro de risco por voltar a jogar na pandemia, há uma série de impedimentos legais para que o futebol retome suas atividades. Estados e Municípios são responsáveis pelas licenças e alvarás necessários à realização de eventos esportivos. Enquanto medidas mais duras de distanciamento social estiverem em vigor, é praticamente impossível que o futebol retome suas atividades. Entidades esportivas também estão conscientes das suas responsabilidades. A Federação Paulista de Futebol, por exemplo, declarou que a prioridade é a preservação da saúde e que sua Comissão Médica está trabalhando num protocolo de segurança. Se todos os envolvidos estiverem testados e saudáveis, seria possível jogar com os portões fechados? Com todas as licenças e autorizações, num ambiente seguro, por que alguém se recusaria a jogar ou exigiria qualquer coisa fora do contrato de trabalho?
Os atletas podem não querer voltar a treinar. Legalmente, quais são os direitos de atletas e clubes nessa situação?
Enquanto medidas de distanciamento social estiverem em vigor, não há como retomar plenamente as atividades do futebol e atletas não podem ser obrigados a colocar em risco a própria saúde. Entretanto, assim que as autoridades públicas permitirem a retomada das atividades, em regra, não há motivos para que não cumpram seus contratos.
A FIFA sugeriu que os contratos dos jogadores que estão perto do fim sejam prorrogados até o fim da temporada daquele país. Quais são os direitos de jogadores e clubes nesses casos?
Em regra, sugestão não é obrigação! É preciso analisar cada caso para verificar os direitos das partes.
A FERJ fez um pedido para formalização de um contrato de menos de três meses para jogadores de clubes menores conseguirem terminar a disputa do Campeonato Carioca. No futuro, um clube que se sinta prejudicado, pode ir ao Tribunal alegando escalação irregular de um jogador que teve o contrato estendido, só para disputar as rodadas finais do Campeonato Carioca, por exemplo?
O artigo 30 da Lei Pelé é claro ao estabelecer que o contrato de trabalho do atleta profissional terá prazo determinado, com vigência nunca inferior a três meses, nem superior a cinco anos. O que acontecer é uma prorrogação do contrato existente e, se for bem feita, não gera nenhum risco de contestação de regularidade contratual para escalação.
O que pode ser feito em relação ao pedido da Comissão Nacional de Clubes (CNC) para que o governo congele o Profut por 12 meses e perdoe novas dívidas na União?
O problema imediato é de liquidez e isto não vai colocar dinheiro no caixa dos clubes, que em alguns casos já não vem mesmo honrando seus compromissos. Não seria mais inteligente buscar meios para honrar compromissos em vez de um esforço para não pagar? Mais do que nunca, o Estado precisa arrecadar para gastos com saúde e para impulsionar a economia.
Neste momento, o foco é garantir a sobrevivência da atividade econômica e qualquer proposta de renúncia de receita pública precisa estar muito bem embasada, o que inclui a demonstração clara de seus impactos socioeconômicos, tanto no futebol, quanto no Estado. Se os clubes deixarem de pagar o Profut, isto garantirá que paguem funcionários e fornecedores? Faz sentido discutir isso sem fazer as contas? O ponto a se discutir não é o perdão de dívidas.
A questão é saber como clubes podem ter crédito para superar a crise de liquidez, honrar seus compromissos e se estruturar para melhorar a própria gestão daqui para frente.
Como defensor deste modelo, acredita que um clube-empresa teria mais facilidade em atravessar uma pandemia como essa? Acha que o futebol brasileiro precisa da uma reformulação neste sentido?
Agora mais do que nunca. Numa empresa, há responsabilização dos gestores e o patrimônio investido pelos sócios responde pelas falhas da gestão. Praticamente 90% dos jogadores brasileiros recebem até dois salários mínimos. Se clubes fossem empresas, resolveriam a questão salarial através dessa linha de crédito emergencial que o Governo lançou para financiar a folha de pagamento pelos próximos dois meses.
O Brasil é o maior exportador de jogadores do mundo e não recebe nenhum investimento. Até brasileiros preferem investir no exterior, como é o caso do Ronaldo no Valladolid e do Flávio Augusto no Orlando City.
Onde tudo é de todos, nada é de ninguém. Futebol profissional é negócio de bilhões, não pode mais ser gerido em estruturas de contar tostões. Empresas vão à falência, bens são leiloados e paga-se o possível a credores. Por que carregar eternamente um passivo que impede o desenvolvimento pleno da atividade e prejudica o país inteiro?
É calculável o prejuízo que os clubes vão ter ao final desta pandemia? Quais principais impactos que eles devem sofrer?
O prejuízo é incalculável e não se sabe até quando eventos esportivos ficarão suspensos, nem a extensão dos efeitos econômicos no arranjo produtivo e no poder de compra dos torcedores/consumidores. Amir Somoggi, especialista da Academia LANCE!, projeta que o esporte deve perder mais de US$ 15 bilhões no mundo.
O jornalista Rodrigo Capelo, em reflexão com Pedro Daniel, executivo da EY (empresa de serviços de auditoria) aponta que clubes brasileiros deixarão de arrecadar entre R$ 500 milhões e R$ 2 bilhões em 2020.
O problema é ainda maior porque o futebol brasileiro estava no grupo de risco, cheio de comorbidades: arquitetura institucional arcaica, estrutura de governança obsoleta, modelo de gestão ineficiente e crise de liquidez beirando a insolvência.
Há diversos campeonatos importantes pelo mundo paralisados por conta da pandemia. Como enxerga o movimento pelo retorno de torneios estaduais?É um prejuízo financeiro justificável (principalmente para os grandes) para se apressar a volta de competições menos expressivas?
Mesmo que se quisesse reiniciar os campeonatos estaduais no Brasil, há no momento uma série de impedimentos legais para que o futebol retome suas atividades. Estados e Municípios são responsáveis pelas licenças e alvarás necessários à realização de eventos esportivos. Enquanto medidas mais duras de distanciamento social estiverem em vigor, é praticamente impossível que o futebol retome suas atividades. Até a Bielorrússia, único país da Europa que mantém jogos de futebol regularmente apesar da pandemia, teve que adiar dois jogos devido a suspeitos de casos de COVID-19.
Clubes da Série C estão se movimentando por um novo auxílio financeiro da CBF. Qual é o papel que a entidade deve ter no futebol brasileiro em meio à paralisação?
Entre os principais mercados do mundo, só no Brasil clubes não têm liga. Essa fragilidade da arquitetura institucional do futebol brasileiro acaba aumentando ainda mais a responsabilidade de atuação da CBF nesse momento de crise, pois ela é a única entidade organizada para articular questões relevantes para o futebol brasileiro. A lógica é uma só: quem pode ajudar, tem que ajudar.
Fonte: Esporte Interativo