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Testagem em massa

O teste rápido, feito a partir da coleta de uma gota de sangue, é uma das modalidades exisitentes Mateus Bruxel / Agencia RBS

Desde que a pandemia de coronavírus alvoroçou o mundo, ações de testagem em massa da população ganham espaço no noticiário internacional e no debate acadêmico. Coreia do Sul, Singapura e, mais recentemente, países do Golfo Pérsico despontam como modelos de rastreamento e controle.

O Brasil se mantém no fim da lista de testes realizados, enquanto pesquisadores reforçam a importância da medida em larga escala e sugerem alternativas viáveis, baseadas em recortes regionais, que poderiam ser adotadas inclusive no Rio Grande do Sul.

Entre elas, estão a verificação de nichos específicos, como trabalhadores da Região Metropolitana e de setores distintos da economia, e a adoção de aplicativos de celular, a exemplo do que vem sendo feito no Rio de Janeiro, para orientar a execução das análises (leia os detalhes mais abaixo).

É consenso entre os especialistas que, quanto mais testes são feitos, mais robustas são as informações à disposição do gestor público. Na hora de tomar decisões, isso é fundamental.

— A Organização Mundial da Saúde vem batendo nessa tecla desde o início, e não é à toa. O Brasil até hoje não teve êxito. Nossa testagem é rudimentar e nos oferece números imprecisos, o que vale também para os Estados. Temos de mudar essa realidade para que possamos de fato ver o que se passa — defende Luciano Goldani, professor titular de Doenças Infecciosas da UFRGS.

O retrato exato do cenário depende de uma série de fatores, entre eles a particularidade dos testes escolhidos. Há basicamente dois tipos: um deles, denominado RT-PCR, identifica a presença do vírus no organismo, e o outro, mais rápido, aponta a existência de anticorpos no sangue (veja os detalhes abaixo).

Em verificações amplas, explica o sanitarista Claudio Maierovitch, coordenador do Núcleo de Epidemiologia e Vigilância em Saúde da Fiocruz, o RT-PCR serve para detectar onde a infecção está ativa, possibilitando o bloqueio das cadeias de transmissão. Isso ocorre quando um caso é confirmado e isolado, e as autoridades buscam seus contatos, que também são testados e confinados, e assim por diante.

A outra modalidade mostra quem já foi infectado e ajuda a entender qual é a tendência da epidemia. Por exemplo: uma amostra colhida em determinado município pode revelar em quais bairros o vírus está circulando mais e, assim, orientar medidas imediatas de mitigação.

— Nenhuma das duas estratégias significa testar toda a população de uma vez, mas usar os testes para alimentar sistemas de informação que irão embasar as ações — ressalta Maierovitch (leia a entrevista completa no fim do texto).

Ou seja: não se trata, necessariamente, de avaliar todos os habitantes de um local a esmo.

— Excesso de informação é igual a nenhuma informação — sintetiza Ricardo Kuchenbecker, professor de Epidemiologia da UFRGS e gerente de risco do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.

Para que a medida cumpra sua função, é preciso traçar um plano levando em conta as características do lugar, a fase da epidemia e o que se busca obter. Não há modelo perfeito a ser reproduzido, nem mesmo uma taxa ideal de testes.

Neste início de junho, Emirados Árabes é o país que, proporcionalmente, mais analisa amostras coletadas de seus moradores, com 217,1 mil testes por milhão de habitantes — no Brasil, a taxa é de 4,4 mil (veja os gráficos).

Desde o começo, a testagem foi ampla, com a instalação de drive-thrus em cidades como Dubai e Al Ain. Abu Dhabi chegou a receber um centro de testes para trabalhadores. O tamanho da população é semelhante à do Rio Grande do Sul, mas as similaridades terminam aí. O país é um dos mais ricos do mundo, tem o islamismo como religião oficial e, durante a pandemia, adotou medidas duras, incluindo toque de recolher.

A Coreia do Sul, que já esteve no topo do ranking e é um exemplo citado à exaustão, também se distancia da nossa realidade, inclusive na forma como as pessoas respondem a ordens ou orientações.

Naquele naco do globo, logo que surgiram os primeiros doentes, os testes começaram em grande volume. Os resultados eram ligados ao sistema de telefonia celular e era possível saber onde o infectado andou e com quem esteve, permitindo ação cirúrgica das autoridades.

— A Coreia fez algo que não é factível para nós. O Brasil está muito longe disso, seja pelas diferenças regionais, pela dificuldade de acesso a insumos ou mesmo pela demora nos testes. Adotar a testagem em massa, hoje, exigiria uma estratégia totalmente customizada — argumenta Kuchenbecker.

Por isso é tão difícil fazer algo do tipo em um país tão díspar e de dimensões continentais, mas não é impossível, desde que se aposte em um enfoque regionalizado. E é aí que entram Estados e municípios.

O que propõem os especialistas

A atual fase da pandemia, o epidemiologista Ricardo Kuchenbecker avalia que uma alternativa factível seria direcionar a estratégia de testagem em massa para os trabalhadores que retomam atividades em um determinado local, como a Região Metropolitana.

São 4,3 milhões de habitantes, mas apenas uma parte passaria por exame, principalmente as pessoas que trabalham em uma cidade e moram em outra, já que a mobilidade urbana pode facilitar a transmissão do vírus e é muito presente em conglomerados como a Grande Porto Alegre.

A definição do público-alvo partiria das próprias empresas, que, em seus departamentos de medicina ocupacional, detêm informações sobre seus empregados. Esse tipo de plano ajudaria a evitar, por exemplo, surtos regionais como aqueles registrados em frigoríficos.

Para diluir os custos, a ação teria de envolver um grupo de prefeituras, com apoio do Estado e do Ministério da Saúde, e a participação ativa do empresariado, que poderia ajudar a bancar parte dos testes.

Na avaliação de Kuchenbecker, a adesão dos empreendedores seria essencial inclusive para expandir esse tipo de ação a setores específicos da economia.

— Talvez a iniciativa privada pudesse ajudar a produzir informação estratégica a partir de testes em massa. Temos visto doações importantíssimas feitas por empresários, inclusive de leitos, mas, para uma retomada segura, precisamos de mais testes — destaca o especialista.

Presidente da Federação do Comércio de Bens e de Serviços do Estado (Fecomércio-RS), Luiz Carlos Bohn diz que o setor está aberto ao debate, embora nem todos os empresários tenham condições de ajudar, em razão da crise.

— Há espaço para discussão e é uma pauta importante. Todos queremos voltar com segurança — ressalta Bohn.

À frente da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), o epidemiologista Pedro Curi Hallal também considera possível implementar iniciativas do tipo no Estado. Hallal coordena a pesquisa que apura a prevalência do vírus na população gaúcha.

O estudo, que agora está sendo replicado no país, vem ajudando a orientar o governo estadual na pandemia, mas envolve testes por amostragem (ou seja, estima quantas pessoas já tiveram contato com o vírus). Segundo Hallal, isso é diferente da testagem em massa.

Para o reitor da UFPel, uma saída para viabilizar a iniciativa poderia ser a adoção de um aplicativo de celular semelhante a uma plataforma que vem sendo testada no Rio de Janeiro desde o fim de abril. Desenvolvido sem fins lucrativos pelo Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino e pela Zoox Smart Data, o Dados do Bem foi criado em 25 dias e já tem mais de 100 mil downloads.

Funciona assim: a pessoa baixa o app e preenche um questionário para saber se tem sintomas de covid-19. Caso o risco seja alto, pode ser convidada a agendar exame de graça (data e horário são enviados por QR Code, no próprio celular). Se o resultado for positivo, o paciente recebe os cuidados de saúde previstos e o aplicativo pedirá a indicação de cinco pessoas com quem o infectado teve maior contato nos últimos dias para que também respondam às questões.

Em nota ao jornal O Globo, o secretário estadual de Saúde do Rio, Edmar Santos, disse que o projeto permitirá acompanhar a curva de casos de forma mais imediata e identificar as regiões mais vulneráveis. Algo parecido, na avaliação de Hallal, poderia auxiliar também o Rio Grande do Sul.

— Neste momento em que a prevalência do vírus no Estado ainda é baixa, daria para usar um método desse tipo. Não é difícil criar o app e pode ter a participação de universidades. O financiamento dos testes poderia contar com a parceria da iniciativa privada. O Rio Grande do Sul está fazendo tudo certo até agora. Por que não acertaria nisso também? — questiona Hallal.

 

Fonte: Gaúcha