O paulistano Paulo Lima sempre sonhou em ser rapper. Compondo e cantando desde os 12 anos, era através das rimas e da música que ele pensava ajudar sua comunidade no Jardim Guarau, periferia da zona oeste de São Paulo, mas a vida tomou outros rumos.
Hoje faz parte de um contingente de quase 4 milhões de jovens que se equilibram numa moto ou numa bicicleta para fazer entregas, na roda da economia informal do Brasil. Muitos trabalham via aplicativos como Rappi ou iFood, sem nenhum benefício. Cruzam a cidade para entregar comida às famílias de classe média de estômago vazio.
Lima, mais conhecido como Galo, tem consciência desse contraste, que ficou ainda mais evidente na pandemia do coronavírus. Trabalhadores como ele tornaram-se essenciais, livres para trafegar (de máscara) durante o confinamento no país que começou em meados de março. Mas ganham pouco e vivem no risco. De contrair o vírus, e de viver na informalidade. Qualquer acidente na rua, a responsabilidade é deles.
Muitos acreditaram no sonho do empreendedorismo que o liberalismo radical do Governo Bolsonaro vendeu. Caíram, na verdade, na uberização do trabalho, sem contratos ou assistência.
“A revolução industrial suprimiu empregos e a uberização suprime direitos”, alerta o paulistano de 31 anos. “Asta desses aplicativos é a concretização da proposta fascista que Bolsonaro usou para se eleger: mais empregos, menos direitos. Tem um batalhão de entregadores nas ruas, todos sem direitos”, explica.
Galo tornou-se uma das vozes mais representativas do Brasil de 2020 ao criar e liderar o Movimento dos Entregadores Antifascistas em meio à pandemia. O grupo reúne os informais de aplicativos, e tem representantes em vários Estados do país.
O movimento tem ido às ruas participar de protestos para defender a democracia e reivindicar direitos básicos. “Fome!”, é o grito que escolheram. No dia 1º de julho eles participam de um novo ato para marcar sua identidade. Entregadores farão greve nesse dia, para fazer notar sua importância. Um alerta para os aplicativos, e para a classe média que não os enxerga. Na última semana, motos e bicicletas de entregadores circulam por São Paulo com um adesivo que convoca para uma paralisação desses trabalhadores informais. A greve é convocada por subgrupos que surgiram durante os protestos pela democracia e contra o autoritarismo do Governo Bolsonaro no último mês.
A gota d’água para Galo foi o dia 21 de março, seu aniversário, quando o pneu da moto furou, e ele não pôde concluir uma entrega. Foi bloqueado pelo aplicativo para o qual prestava serviço. “Foi quando pensei ‘chega, mano, vou denunciar esses caras aí’. Eles não explicam por que te bloqueiam, te mandam ler o contrato e dizem que não têm que explicar nada, não”, conta ele. Passou a fazer entregas por conta própria para clientes que têm seu celular, até porque a maioria dos aplicativos o bloqueou.
Diz que não teme pegar a covid-19, mas sim levá-la para casa, onde vive com os pais, a filha de três anos, a esposa, a sogra e um cunhado de oito anos. Em março, Galo criou um abaixo-assinado —que já tem mais de 550.000 assinaturas— para fazer com que os aplicativos disponibilizem café da manhã, almoço e jantar, além de um kit higiene para os entregadores.
Foi a semente do Movimento de Entregadores Antifascistas. “Quando fui falar com os colegas, alguns me mandaram ir para Cuba, disseram que não eram mortos de fome, que o que queriam era ganhar melhor para comprar sua própria comida”, lembra. Aos poucos ganhou apoio e fortaleceu seu movimento que já levantou, por exemplo, a média de ganho dessa atividade de risco: 963 reais por mês por 12 horas de trabalho diárias .
No dia 7 de junho, ao lado de uma dezena de colegas entregadores, Galo participou do protesto antirracista e antifascista no Largo da Batata e, com uma retórica direta, que muitas autoridades invejariam, e um vocabulário popular, fez um breve discurso contra a precariedade do trabalho. Um vídeo do momento viralizou nas redes sociais, e, desde então, ele não para de realizar debates virtuais e dar entrevistas. Tornou-se um líder social. Galo critica o Governo de Jair Bolsonaro pelo seu autoritarismo e por querer “silenciar” os movimentos sociais, ao mesmo tempo em que apoia manifestações que pedem o fechamento do Supremo Tribunal Federal e a volta da ditadura militar.
Galo forjou sua formação política nas trocas com os companheiros do hip hop, que lhe apresentaram os livros. “Aí comecei a conhecer histórias de políticos de rua, como Malcom X, Martin Luther King, Che Guevara, Mahatma Ghandi, e eu senti vontade de ser aquilo”, admite.
“A minha escola política é o hip hop. Graças ao rap, sempre tive esse sentimento antifascista comigo. Mas se eu me tornei um nome importante nesse movimento é mais pelas circunstâncias do que por conhecimento”, diz Galo, que se define como um “político de rua”
Já foi até sondado para lançar-se como pré-candidato a vereador de São Paulo, mas recusou o convite. “Quero continuar até o fim da minha vida como um político de rua, um político que articula os trabalhadores na rua, e me unir com os políticos institucionais e sindicais que tenham o sentimento de empoderar o trabalhador”.
Ele considera essa atuação na base importante por ser algo “que ninguém quer fazer por muito tempo” e que muitos usam de ponte para conseguir mais influência e dinheiro na política institucional. “Mas a política de rua é importante, mano. Um político de rua pode mudar muito mais que um político de caneta, até porque é o punho cerrado que diz o que a caneta tem que escrever. Cerrar o punho na rua é a política mais importante do mundo”, afirma.
Horas antes de falar com o EL PAÍS, Galo conversou com Luciano Huck, famoso apresentador de TV que se perfila como candidato à presidência nas eleições de 2022 e um fervoroso advogado do empreendedorismo. “Acho zoado esse discurso dos não-políticos, os empreendedores, na política. Deixei claro isso para ele. Para mim, os ricos do país sabotaram a política para se vender como solução do futuro. Se você é um não-político, o que você quer na política?”, questiona o entregador que, diferente da imensa maioria dos brasileiros, não quer ser rico. Sonha com uma casa confortável, um jardim bonito com um pé de manga, onde possa ver sua filha correr. A música também é seu refúgio. Compõe e canta até hoje. “O amor da minha vida é o rap”, afirma.
Fonte: El País