Ao hábito de despertar cedo todas as manhãs, passar meu café e me sentar para a leitura, tenho tentado incluir alguma prática que seja capaz de ampliar minha sensibilidade para a arte.
Arte é importante, tão importante que é uma das formas possíveis de atribuir sentido às nossas vivências e, de forma sublime, dar vazão e expressão para o que há de mais visceral em nós.
Tenho gostado mesmo é de ouvir declamações de poesias e o engraçado é que sempre parece haver aquela que fala diretamente ao coração. Na quinta-feira, que amanheceu chuvosa e fria, denunciando que o inverno não tarda, ouvi:
Se eu fosse eu, de Clarice Lispector, assim que a declamação terminou fui até a estante e encontrei o livro de crônicas que tenho dela, demarcado justamente nessa poesia. Senti que deveria compartilhar com vocês. Segue o trecho inicial:
“Quando não sei onde guardei um papel importante e a procura se revela inútil, pergunto-me: se eu fosse eu e tivesse um papel importante para guardar, que lugar eu escolheria? Às vezes dá certo! Mas muitas vezes fico tão pressionada pela frase “se eu fosse eu” que a procura se torna secundária, e começo a pensar. Diria melhor, sentir. E não me sinto bem. Experimente: Se você fosse você, como seria e o que faria?”
Enviei esta pergunta final à alguns amigos de sensibilidade, recebi respostas como:
“Ah, ok, vou refletir”
“Porque diabos eu não estou sendo eu? sinto que vou contra meu eu, isso me incomoda, mas não sei como definir, entender ou explicar esse eu, mas ele grita. No fim das contas, a gente só escolhe quem agradar, ou eu ou os outros, enquanto vivemos uma farsa”
“Teria psicopatas e serial killers e gente de todo tipo comendo solto, e tem a parte do regular as pessoas e do quanto isso é responsável pelo que escondemos dos outros”
“Eita que pergunta forte”
“Primeira atitude, se eu fosse eu, viajar para algum lugar, desconectar das pessoas e dos afazeres para pensar sobre esse eu que conheço tão pouco”
E há também os poéticos:
“Se eu fosse eu, nunca deixaria de acreditar no amor e na solidariedade […] honraria cada ferida e selecionaria com sabedoria se quero ou não acatar imposições […] faria juras futuras porque sei que sou capaz de cumpri-las […] visitaria meus familiares e passaria horas ouvindo […] lamento profundamente saber que um dia não vou mais poder ser eu”.
É, de fato é intrigante, brotam reflexões bastante variadas, povoa o pensamento tudo aquilo que eu não me permito viver, não me autorizo a fazer, escolho ou recuso, em favor da convivência ou de ser para mim mesma pessoa suportável, tolerável e gostável.
Nos fazemos nas relações que estabelecemos com as pessoas e com o mundo, somos um devir, nunca prontos, sempre nos fazendo e refazendo. Uma relação necessariamente pressupõe o outro e minhas ações se firmam não somente sobre o que eu faço ou desejo fazer, mas como isso impactará na vida daqueles com quem eu convivo e de que forma eles exercem influência sobre mim.
Minhas escolhas e recusas mostram pro mundo quem eu sou. Em partes, ao que parece, Clarice sugere um mundo de eus e possibilidades ocultos dentro de nós, eus não vividos, não escolhidos.
Afinal, o que me dificulta ou impede de ser mais eu? por quais razões eu não escolho viver as outras possibilidades de ser eu? Em mim, brota certo sentimento de angústia diante das possibilidades, que são tantas e, também, angústia diante de tudo que existe e que quer me dissuadir e ser no mundo dentro de padrões e limites pré-estabelecidos por valores muitas vezes apequenadores. Somos livres e, ao mesmo tempo, extremamente limitados.
Gosto de terminar deixando em aberto, para isso, vamos de Nietzsche: “Temos a arte para não padecer da verdade”.
Dadas as amostras iniciais do inverno, por aqui, a sopa esfria.
Caloroso cumprimento e até semana que vem!
Solange Kappes
Psicóloga CRP 12/15087
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