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Como funcionam os órgãos para fiscalizar a violência policial

Foto: Ian Cheibub

No sábado (13), foi divulgado um vídeo em que policiais militares agridem com tapas e golpes de cassetete um jovem em uma rua no bairro do Jaçanã, zona norte de São Paulo. O homem não oferece resistência. “Sou trabalhador”, apela, antes de ser atingido mais uma vez.

Um dia antes, em Barueri, na Grande São Paulo, policiais surraram um homem negro em circunstâncias similares. Mesmo rendido, o homem continuou a ser espancado pelos agentes da lei. Vizinhos que tentaram interceder em favor da vítima também acabaram sendo agredidos pelos policiais. De novo, um registro em vídeo feito por moradores serviu como evidência do abuso.

Nos dois casos, o governador João Doria (PSDB) disse que o comportamento dos policiais era “absolutamente condenável”. “Os policiais envolvidos foram afastados e serão submetidos a inquérito. O governo de São Paulo não compactua com qualquer tipo de violência”, afirmou.

Os números da Secretaria da Segurança Pública de São Paulo registram que houve um aumento de 54,6% de “mortes decorrentes de intervenção policial” relacionadas à PM no estado durante o mês de abril, na comparação com o mesmo mês em 2019.

A categoria, antes conhecida como “auto de resistência”, se aplica a ocorrências em que a ação letal por parte dos policiais seria justificada pelo fato de agentes terem reagido a uma agressão.

O período coincide com a quarentena decretada em razão do novo coronavírus, com menor circulação de carros e pessoas nas ruas das cidades paulistas.

Segundo estatísticas de abril, também divulgadas pela secretaria, diminuiu o número de ocorrências criminosas. Os roubos caíram 30,3% no estado e os furtos, 53,3%.

A letalidade no Rio

No Rio de Janeiro também houve aumento da letalidade policial no mês de abril, também período de quarentena no estado. O Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro divulgou um aumento de 43% no número de mortes causadas por agentes do estado em relação a abril de 2019.

Foi o segundo mês com mais mortes em ações policiais no estado do Rio desde que a série histórica de dados foi inaugurada, em 1998.

A estatística, que representa 177 mortes por intervenção policial, contrasta com a diminuição de ocorrência de homicídio doloso (14% a menos em relação a abril de 2019) e roubos de rua (queda de 64% na comparação com o mesmo mês no ano anterior).

Assim como no estado de São Paulo, as medidas de isolamento social contribuíram para puxar as ocorrências para baixo.

No mês de maio, ganhou repercussão nacional a morte do menino João Pedro, de 14 anos, no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo. Sem ligação com o crime, o garoto foi atingido por tiros de fuzil dentro da casa onde morava.

A polícia afirmou que traficantes teriam invadido a casa e jogado uma granada na direção dos agentes. O pai do adolescente afirmou que polícia tentou forjar a situação. “Não tinha bandido. Entraram na casa e atiraram duas granadas. Além dos tiros. Só tinha adolescentes de família”, declarou. Na operação, participaram policiais federais e locais.

O papel das corregedorias e ouvidorias

O Ministério Público é responsável pelo controle externo das polícias. Mas os erros, desvios e abusos por parte dos policiais são investigados inicialmente por órgãos que integram a própria estrutura das corporações. Em cada estado da federação, as polícias militar e civil contam com suas respectivas corregedorias.

As corregedorias investigam denúncias encaminhadas pela população às ouvidorias da segurança pública, entidades que não pertencem às estruturas das polícias e são coordenadas por representantes da sociedade civil nomeados pelo governador do estado. Além do encaminhamento, as ouvidorias têm o papel de acompanhar o trabalho da corregedoria.

Com relação casos de agressão por policiais ocorridos em São Paulo, a Corregedoria da Polícia Militar declarou que iria investigá-los.

No Rio de Janeiro, a Corregedoria Geral de Polícia Civil abriu uma sindicância administrativa disciplinar para apurar a participação dos agentes civis que participaram da operação que resultou na morte de João Pedro. Provisoriamente, segundo o órgão, ele seriam transferidos para atividades administrativas.

Em tese, as corregedorias funcionam como departamentos independentes. No entanto, seus quadros são formados por policiais que, antes ou depois de sua passagem pela corregedoria, podem atuar em outras áreas das corporações.

Para Samira Bueno, diretora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em entrevista ao Nexo, a falta de um plano de carreira centrado na corregedoria enfraquece seu poder de atuação.

“Considerando que é alguém que vai investigar seus pares, é uma pessoa que tem de ter autonomia e garantia de que vai fazer esse trabalho sem ser repreendido. Então, uma pessoa que trabalha hoje na corregedoria amanhã pode ser subordinado de alguém que ele investigou. Não há garantia de que vai ficar mais tempo alocado na corregedoria ou que aquilo não vai comprometer a inserção dele na corporação. Considerando que esses policiais ficam 30 anos em serviço é muito difícil que esses policiais sejam capazes de ter isenção e aí eu tô falando de uma política institucional mesmo.”

Diretora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública

De acordo com dados da Ouvidoria das Polícias do Estado de São Paulo, em 2017, quando 940 mortes foram provocadas por agentes da Polícia Militar, uma marca histórica, apenas 3% desse total foi investigado pela corregedoria. Os especialistas ouvidos pelo Nexo afirmam que há poucos dados e informações sobre desempenho e resultados das corregedorias.

Em grande parte dos estados, as corregedorias se dedicam exclusivamente a apurar denúncias de infrações relacionadas a regras internas de conduta e disciplina.

“Tive contato com policiais civis e PMs que trabalharam em corregedoria no Rio de Janeiro e eles mesmo reconheciam que ela é muito insuficiente diante da gravidade das violações cometidas pela Polícia Militar na cidade”, disse ao Nexo João Trajano Sento-Sé, professor da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) e pesquisador do Laboratório de Análise da Violência.

“A questão é o quanto essa instituição quer funcionar como controle e em que casos porque ela pode ser extremamente efetiva para questões de hierarquia ou cumprimento das questões disciplinares, mas não necessariamente para questões relativas ao uso da força”, corroborou Bueno, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

A legitimação da violência

Nos últimos anos, com a disseminação entre políticos e autoridades de um discurso que exalta a dureza e a violência policial contra o crime, o trabalho de investigação e correção de irregularidades policiais tende a ser impactado de forma negativa, de acordo com Bueno, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Alguns dias depois de tomar posse, em 5 de janeiro de 2019, o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel (PSC), derrubou uma medida que protegia policiais atuando em investigações da corregedoria.

Com a mudança, os agentes perdiam a possibilidade de escolher para qual unidade iriam trabalhar depois de saírem da corregedoria. Era uma maneira de evitar que fossem deslocados para setores que tinham investigado e onde corriam risco de sofrer retaliações.

Na campanha eleitoral, Witzel afirmou que policiais que matassem pessoas que portavam fuzis não policiais que matarem quem portar fuzis não devem ser responsabilizados “em hipótese alguma”. “A polícia vai mirar na cabecinha… e fogo”, disse na época.

“Quando um governador, uma liderança política, como o presidente, verbaliza que a polícia tem de matar, tem de usar a violência com relação aos problemas do dia a dia, essa liderança legitima que o policial aja como bem entende, desviando da lei”, acredita Bueno.

Recentemente, o Ministério da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos, encabeçado por Damares Alves, removeu dados sobre violência policial do relatório de 2019 sobre denúncias recebidas pelo órgão por meio do Disque 100.

Nos relatórios dos anos anteriores, em 2017 e 2018, os números registrados apontavam para um crescimento das denúncias de arbitrariedades cometidas por agentes da lei. A pasta informou à imprensa que os dados foram retirados porque apresentavam “inconsistências”.

Durante seu governo, o presidente Jair Bolsonaro nunca se manifestou a respeito de vítimas de violência policial, incluindo nos casos da menina Agatha Félix, de 8 anos, morta em setembro de 2019 numa operação policial no Rio de Janeiro, e de João Pedro.

Bolsonaro é um ferrenho defensor do excludente de ilicitude, dispositivo que isenta de punição atos praticados por agentes do estado que normalmente seriam enquadrados como crimes — inclusive homicídios ou lesões corporais graves.

João Trajano Sento-Sé, do Laboratório de Análise da Violência, da Uerj, lembra que a atribuição do Ministério Público de exercer o controle externo da polícia e as ouvidorias surgiram no contexto da redemocratização do país e da Assembleia Constituinte, de 1988 em que “o papel de controle do estado pela sociedade estava sendo debatido em várias esferas”.

Para o pesquisador, “era natural o foco nas polícias que, em especial no fim dos anos 70 e na década de 1980, eram vistas como um dos braços do estado que mais sistematicamente violava direitos do cidadão”.

“O conceito da ouvidoria é muito interessante, mas não tem funcionado na prática”, ressalvou Sento-Sé. “As mais graves violações são aquelas que remetem ao uso excessivo da força, sobretudo em atuações em favelas ou áreas periféricas. A polícia age assim com a chancela, tácita ou explícita, do governo estadual. E o lugar do ouvidor é indicação do governo estadual. É como se colocássemos o lobo para tomar conta do galinheiro. Salvo raras exceções, é incomum que os ouvidores batam de frente com políticas que os governos têm chancelado. Ao longo dos anos, o ouvidor se tornou um espectro de si mesmo”.

Fonte: Nexo Jornal