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Como alocar recursos? A ética do orçamento público na pandemia

Foto: Bruno Kelly

A análise do mecanismo de distribuição mostra que, por ser basicamente um critério per capita, a regra de repartição dos repasses ignorou as dimensões epidemiológica, demográfica, socioeconômica, espacial e de capacidade de oferta de ações e de serviços de saúde

Mais de 40 mil pessoas já morreram no Brasil e outros tantos milhares infelizmente ainda vão morrer por uma doença que ainda não tem cura nem vacina. O governo de um país em desenvolvimento não tem recursos para liderar esforços globais de pesquisa sobre tratamento ou vacina, mas pode, sim, mitigar os impactos da doença, na saúde e na economia.

Em cada uma dessas áreas, tem que fazer escolhas técnicas: qual a alocação de recursos que mais reduz as mortes pela doença dentre as opções que podem ser custeadas com o dinheiro em caixa? Por exemplo, é melhor comprar um respirador adicional ou alocar alguns leitos a mais em hospital de campanha?

Em muitos casos, contudo, os dilemas não são puramente técnicos, porque envolvem impactos diferentes sobre diferentes atores sociais. Melhor reabrir a economia ou impor um lockdown? O lockdown preserva mais a saúde dos grupos de risco da doença, mas prejudica mais os grupos mais vulneráveis economicamente.

Algumas políticas conseguem romper esses dilemas morais quando há orçamento — por exemplo, combinar lockdown com auxílio emergencial para os mais pobres — ou capacidade de controlar o surgimento da epidemia nos focos iniciais, como observamos até aqui em alguns países muito pobres, na África Sub-Saariana. Mas isso não é possível quando os recursos disponíveis chegam ao limite ou a epidemia se alastrou.

Ainda, alguns desses dilemas não envolvem necessariamente marcadores de idade ou estrato social. Por exemplo, se só houvesse orçamento para uma das opções, o que seria melhor: distribuir equipamentos de proteção individual para os profissionais da saúde, ou máscaras para os cidadãos?

No famoso dilema ético idealizado por Philippa Foot, um trem está fora de controle e se encaminha para atropelar cinco pessoas na ferrovia. Você pode mudar a orientação dos trilhos para que o trem se desvie para a pista lateral, onde ele inevitavelmente vai atropelar uma pessoa. O que você faria?

A resposta está longe de ser óbvia. Importa saber quem são as pessoas em cada um dos trilhos? Ou importa salvar mais vidas, independentemente de quem são? E se as pessoas tiverem chances diferentes de sobreviver ao atropelamento?

No caso do coronavírus, não estamos falando de abstração. Diante da precariedade da estrutura de saúde pública da maior parte dos estados e municípios brasileiros, que precisam desesperadamente da ajuda de recursos do governo federal, o presidente e sua equipe se encontram exatamente no papel de decidir quem vai morrer ou viver diante de um orçamento limitado para ajudar todas as necessidades.

Deveria o governo federal transferir recursos per capita igualmente para todas as unidades da federação? Isso equivaleria a decidir sobre mudar ou não o curso do trem ignorando que pessoas diferentes têm diferentes chances de sobrevivência, já que as mortes totais atribuídas à pandemia estão hoje fortemente concentradas em São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará e Pernambuco, enquanto Rio Grande do Sul, Paraná e Minas Gerais, com pouquíssimas mortes, receberiam também recursos volumosos.

Fonte: Nexo Jornal