Gente que pensa ter direito a Tudo, costuma fazer Nada!
A experiência de trabalho em uma política pública como o SUS dá “pano para manga” em diversas discussões. Agora, a mais entristecedora é, sem dúvida, notar a gritante discrepância na adesão aos tratamentos quando o assunto é um serviço a ser concedido como um direito do cidadão em relação à quando existe a necessidade de buscá-lo na iniciativa privada.
Decorre, em plano de fundo, o fenômeno do ressentimento, que nos caracteriza fortemente enquanto sociedade “pós-moderna”. O psiquiatra Dalrymple (1949) nos explica que a elevação dos direitos à benefícios tangíveis faz com que as pessoas, inevitavelmente, desenvolvam uma mentalidade vil que oscila entre a ingratidão e o ressentimento. Afinal, qual a necessidade de agradecer algo que é meu por direito? E assim, justificam-se inclusive, atitudes canalhas e grosseiras de uma vida inteira por parte de quem detém direitos.
Evidentemente, não é somente na realidade do SUS que a ingratidão se escancara. Em uma sociedade que nos cria como se tudo fosse direito, como se tudo estivesse ao nosso alcance, inclusive nos fazendo acreditar em falácias como a liberdade e a conspiração cósmica para o sucesso, é quase óbvia a resultante de sujeitos mimados que perderam, quase que totalmente, a noção de que a vida é complexa, exigente, infinitas vezes difícil e que, se eu desejo ser amado, respeitado ou conquistar algo, devo fazer por merecer.
Por outro lado, se a vida nos parece simples, em alguma medida isso corresponde à realidade, especialmente se observarmos a multiplicidade do mesmo, praticamente todas as pessoas que encontramos queixam insatisfação, sentimento de vida amorfa, vazio de vínculos, oscilações importantes de autoestima, etc. Ao mesmo tempo em que, no discurso, predomina a liberdade, a permissividade e a tolerância.
Uma vida de entrega e abandono de si, em que o outro deve me acolher, me tratar sempre bem, não me ofender nunca e, inclusive, resolver meus problemas é totalmente antagônica a construção e formação de sujeitos autônomos, fortes e capazes de resistência ante as mazelas do eu e da sociedade. Percebam como a terceirização da vida conecta-se ao ressentimento.
A ideia de que o outro me deve algo, como uma servidão, nos serviços de saúde, produz a sensação de exclusão da própria responsabilidade e faz com que se converta absolutamente tudo, desde uma dor no fio de cabelo até a tristeza pela morte do pet, em uma necessidade de cuidado e tratamento. Não é à toa que a demanda aos atendimentos na Atenção Primária em Saúde só cresce e cresce na mesma medida da falta de adesão às orientações. Mas isto também é óbvio, afinal, se mais uma vez há um vislumbre do desejo de atendimento convertido em uma necessidade, isso só pode resultar na busca por resolutividade em um serviço que é tomado por direito.
O maior desafio, tanto nas políticas públicas quanto no desenvolvimento dos sujeitos, é avaliar a realidade como ela é, sem ingenuidades e buscar pensar com competência em transformações.
Solange Kappes
Psicóloga CRP 12/15087
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