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Ambicioso ou acomodado? A personalidade que te deixa mais perto da felicidade

Prazer e alegria podem contribuir muito para a nossa sensação de bem-estar BBC NEWS BRASIL

Questões sobre felicidade, propósito e metas de vida me fazem lembrar de Dom Quixote, o cavaleiro sonhador do romance homônimo de Miguel de Cervantes, e de seu fiel escudeiro Sancho Pança, a antítese de um sonhador.

De fato, a literatura costuma estar repleta de personagens e temas que narram verdades universais sobre a existência, a experiência e a psicologia humana.

À medida que o romance avança, percebemos que os dois personagens são igualmente sofisticados intelectualmente.

Mas, embora os objetivos de Dom Quixote sejam utópicos, românticos e claramente inatingíveis, Sancho se contenta em se sentir seguro e comer pedaços de pão e queijo – acompanhados de um pouco de vinho, é claro – após cada uma de suas desventuras frustradas.

Sou psiquiatra, e as pesquisas sobre personalidade mostram que aqueles que são mais abertos e curiosos sempre vão querer buscar novas experiências e sensações. É mais emocionante, mas também menos confortável, do que rejeitar o que parece estranho ou desconhecido.

A personalidade inquieta de Dom Quixote, assim como seus ideais sublimes, são os fios condutores de suas aventuras equivocadas.

Incapaz de encontrar emoção na vida cotidiana confortável, mas mundana, de um morador do interior, ele resolve corrigir todos os erros do mundo da maneira mais nobre e valente que pode imaginar. Seus objetivos ambiciosos são inatingíveis e, portanto, ele permanece cronicamente insatisfeito.

Em contrapartida, os objetivos de Sancho (queijo e vinho) são simples, além de plausíveis e imediatamente alcançáveis. Ele enfrentará inevitavelmente algumas emoções difíceis, como qualquer outro ser humano, que o impedirão de ser constantemente feliz.

Mas estará menos inclinado a expressar seus momentos ocasionais de angústia em termos existenciais complexos – e é pouco provável que os mesmos o irritem ou atormentem da mesma maneira.

Por um lado, portanto, a personalidade de Sancho parece mais propensa do que a de Dom Quixote a alcançar um nível satisfatório de bem-estar psicológico. Mas precisamos considerar o fato de que a altivez atormentada de Dom Quixote também proporcionará a ele momentos ocasionais de êxtase que Sancho nunca terá. Dom Quixote vivenciará todos os maravilhosos altos e baixos da existência.

Ele tem um tipo de personalidade que Galeno, o médico grego da era clássica, chamaria de “colérica”: apaixonada, carismática, impulsiva, em busca de sensações. Ele também tem uma vida interior extremamente rica, mas igualmente instável, que produz uma quantidade abundante de fantasia e emoção.

Logo após a Segunda Guerra Mundial, um psicólogo londrino chamado Hans Eysenck desenvolveu outra teoria da personalidade que incluía as dimensões da extroversão e do neuroticismo.

O personagem de Dom Quixote é rico em extroversão (ele se envolve constantemente com o mundo externo) e rico em neuroticismo (sua vida emocional é instável e intensa), combinação que seria equivalente à personalidade colérica de Galeno.

Sancho, por sua vez, é o extremo oposto. Ele poderia ser descrito como “fleumático” na classificação de Galeno. É geralmente introvertido e, sendo perfeitamente estável em termos emocionais, certamente apresentaria uma pontuação muito baixa no neuroticismo. Ele não vê o mundo por meio do filtro de uma vida interior rica, mas volátil – em vez disso, ele enxerga meros moinhos de vento, onde Dom Quixote vê gigantes.

Sabe-se que os tipos de personalidade são preditores do bem-estar psicológico de maneira considerada relativamente intuitiva. Essencialmente, existe uma correlação positiva entre felicidade e extroversão, e uma correlação negativa entre felicidade e neuroticismo. Dom Quixote é mais neurótico que Sancho, mas também é mais extrovertido. Os dois vão encontrar e vivenciar momentos de felicidade de maneiras diferentes.

Por um lado, o que precisamos para ser felizes é uma personalidade estável (baixo neuroticismo) e sociável (extrovertida). Mas não para por aí.

Quem se considera um pouco mais neurótico do que gostaria – e talvez não tão sociável quanto outras pessoas – pode encontrar conforto ao saber que uma vida interior vibrante e movimentada, junto a uma natureza curiosa, pode ser associada com certos tipos de criatividade.

A ideia de felicidade como um estado de placidez e serenidade, facilitada por uma estrutura psicológica estável e tranquila, é convincente. Mas talvez ignore os limites máximos e mais intensos da experiência humana – e estes têm um poder próprio. Não é à toa que o romance de Cervantes se chama Dom Quixote, e não “Sancho Pança”.

Quando Abraham Maslow, o célebre psicólogo americano, colocou a autorrealização no topo da hierarquia de necessidades humanas, ele pensou nela como um impulso positivo para desenvolver o potencial pessoal. E o seu potencial pessoal será diferente do seu parceiro, por exemplo.

Maslow acreditava que as necessidades mais básicas tinham que ser atendidas antes de passar para o nível seguinte – ou seja, água e comida antes da segurança; depois amor, autoestima e só então autorrealização.

Mas pesquisas subsequentes mostram que os seres humanos nem sempre fazem isso na ordem prevista – e que satisfazer diferentes níveis de necessidade simultaneamente, ou na “ordem errada”, parece não afetar significativamente o bem-estar.

Isso explica como aqueles que vivem em países pobres também são capazes de satisfazer suas necessidades psicológicas, mesmo quando é incerto suprir as necessidades mais básicas.

De qualquer forma, ter um conjunto de necessidades – hierárquicas ou não – nos coloca inevitavelmente em uma posição de carência; e a relação entre tentar nos tornar pessoas melhores e a felicidade não é simples. O próprio Maslow enfrentou dificuldades em sua vida pessoal com questões como racismo (ele era judeu) e um péssimo relacionamento com a mãe, a quem odiava.

Pesquisas mostram que fatores como pobreza, dor e solidão nos deixam infelizes, e é igualmente claro que qualquer tipo de prazer contribui para a nossa sensação de bem-estar.

O pensador britânico do século 19 John Stuart Mill postulou em termos simples que a felicidade é “o prazer pretendido, e a ausência de dor”, enquanto a infelicidade é “a dor e a privação do prazer”.

Assim como Maslow e sua hierarquia de necessidades, Mill também viu uma hierarquia semelhante no prazer, com o fisiológico na base, e o espiritual no topo. Ele também desaconselha refletir muito sobre questões relacionadas à felicidade: “Pergunte a si mesmo se você é feliz, e você deixa de ser”.

E, embora Mill enxergasse a felicidade como algo baseado no prazer e na dor, ele também sugere que o fato de ser humano, com tudo o que isso implica, pode trazer uma insatisfação que seria preferível ao mero contentamento.

Dom Quixote é um homem insatisfeito, e suas ambições de conquistar objetivos gloriosos são sempre frustradas. Ele tem, no entanto, certas características que foram encontradas associadas à felicidade: um estilo de atribuição otimista e um locus interno de controle.

Este locus interno de controle significa que Dom Quixote se sente no controle de seu destino (apesar de todas as evidências mostrarem o contrário). O controle reside dentro dele. E seu estilo de atribuição otimista, enquanto isso, se refere ao fato de que ele sempre atribui suas falhas a forças externas transitórias, em vez de questões internas permanentes.

Sancho, por outro lado, tem uma atitude reativa à vida. Ele não tem qualquer fantasia sobre estar no controle de seu destino, que ele acredita estar nas mãos dos deuses.

“O homem de sorte não tem com o que se preocupar”

Portanto, pelo menos neste aspecto, ao tomar as rédeas do seu próprio destino e fazer sua própria sorte, Dom Quixote provavelmente é mais feliz em sua busca, por mais frustrante que seja, do que Sancho em seu contentamento passivo.

A diferença entre contentamento e felicidade, ou, para ser mais preciso, a incompatibilidade que existe entre um estado de contentamento permanente e o ser humano, também foi explorada em romances modernos, escritos séculos depois de Dom Quixote, como A Máquina do Tempo, de H.G. Wells, ou Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley.

Alguns dos personagens destas distopias futuristas, em que a dor e o sofrimento foram erradicados, são perfeitamente plácidos, até mesmo contentes. Mas sua pseudo felicidade insípida, desprovida de escolha ou intensa emoção, é menos desejável que nossas próprias tribulações emocionais imperfeitas – pelo menos de acordo com os autores.

De fato, nossa capacidade de nos sentirmos felizes é afetada por uma variedade de fatores de personalidade e atitudes temperamentais, não apenas por uma única dimensão de placidez versus inquietação psicológica, ou até mesmo de otimismo versus pessimismo.

Mas de que isso importa? Quer a gente tenha uma personalidade do tipo que vê o copo “meio cheio” ou “meio vazio”, nenhum de nós foi concebido para ser feliz – apenas, em última análise, para sobreviver e se reproduzir. Consequentemente, todos nós vamos lutar com frequentes emoções desagradáveis, qualquer que seja o nosso temperamento.

Nossa natureza é perseguir a borboleta fugaz da felicidade, nem sempre para capturá-la. A felicidade não pode ser engarrafada, comprada e vendida. Pode ser, no entanto, uma jornada.

E talvez todos nós possamos encontrar conforto ao saber que nossa insatisfação irritante é parte essencial do que nos torna humanos.

* Rafael Euba é professor de Psiquiatria na Universidade King’s College London, no Reino Unido. Este artigo é parte da série Life’s Big Questions, do site de notícias acadêmicas The Conversation, que está sendo copublicada pela BBC Future.